O NOVO CALENDÁRIO LUTÚRGICO NEOPENTECOSTAL
É uma prática corrente em
determinados segmentos evangélicos fixar uma espécie de ano litúrgico. Este ano
litúrgico cria um calendário bastante claro e objetivo. A partir de uma
“revelação” dada ao apóstolo ou bispo, nomeia-se uma personagem bíblica cuja
história servirá de inspiração aos fieis. Daí a cúpula da denominação
estabelecer que este será o ano de Gedeão, o ano de Elias, o ano de Davi etc.
Pensando nesta prática, pus-me a refletir acerca dos desdobramentos intrínsecos
a isto, e logo me dei conta de sua inconsistência.
Entendamos melhor em que
consiste um calendário desta natureza. Um ano de Josué seria marcado pela queda
de grandes muralhas, pela conquista de uma terra fértil e a travessia do rio
Jordão. Disso decorre que, ao longo do período determinado, os que crerem verão
muralhas despencarem diante de si. A
problemática daqui decorrente refere-se, primeiramente, a uma questão de identidade.
Bem nenhum de nós é Josué! Cada indivíduo possui a sua própria história e tomar
para si aquela que foi de outro consiste, necessariamente, em sua própria
desfiguração individual. A medida da graça de Deus revelada a Josué não deve
ser a mesma que me contemple.
Chama-me ainda a atenção a
relação que os fieis estabelecem, ainda que de forma inconsciente, com as
personagens bíblicas nomeadas. A começar pelo fato que o ano é fixado a partir
do nome da personagem escolhida e não pelo seu Deus, a quem se deve determinada
benesse. A relação que os fieis dessas comunidades passam a ter com as
personagens bíblicas faz delas uma espécie de neopadroeiros dos novos
evangélicos. Quando nos deparamos com “o panteão dos padroeiros do calendário
litúrgico neopentecostal”, podemos constatar traços bastante comuns.
Normalmente, a personagem bíblica escolhida vivenciou um contexto bastante
adverso. O cenário sobre o qual desenrola sua história é de um quadro de
hostilidade humanamente irreversível. Gedeão jamais venceria um exército tão
numeroso quanto o madianita com apenas trezentos homens. Josué não teria
conquistado Canaã apenas rodeando as muralhas de Jericó e tocando trombetas.
Quanto maior o grau das impossibilidades maior a atração que estes cenários
exercem sobre os grupos em tela. A considerar apenas estes elementos, e são
praticamente eles que alimentam as esperanças dessas comunidades, qualquer
herói hollywoodiano substituiria facilmente sua ideia de Deus.
Em segundo lugar, um calendário
desta natureza deixa de fora quase todas as personagens dos evangelhos e, por
conseguinte, a perspectiva da graça de Deus atuando por meio do Cristo
Encarnado. Neste sentido, o próprio Cristo torna-se desinteressante, pois, ao
contrário dos grandes nomes do Antigo Testamento, ele morre sob o signo do
anti-herói. Sua pessoa não serve de inspiração a Judá, muito menos irá
encorajar seus coevos a voos de emancipação nacionalista. As personagens veterotestamentárias
povoavam o imaginário nacional hebreu, expressão de uma puerilidade
religioso-política cuja leitura encontrará outras ressonâncias a partir do
advento de Cristo. Não me desvencilho da ideia de que este calendário
neopentecostal simplesmente ungiu esta necessidade hollywoodiana de
heróis.
Em terceiro lugar, este
calendário repete um modelo de se conceber a história a partir de um movimento
cíclico. Os antigos gregos já pensavam as coisas assim. Nietzsche retomou esta
filosofia da história e a celebrou, com elementos próprios da modernidade, em
seu eterno retorno. O eterno retorno nietzschiano consiste na negação de
qualquer perspectiva metafísica ou apocalíptica da história.
Mais ainda, lançar mão deste
modelo a partir de personagens do Antigo Testamento vai na contramão da própria
concepção rabínica de história. A teologia da história judaica adotou um modelo
linear, e não cíclico. Há mais esperança messiânica no modelo de história
rabínico que no pessimismo paganizado dos neopentecostais.
Fica evidente também o
quanto que tal calendário litúrgico parte da concepção de um Deus facilmente
programado. Consiste em dizer que, dado o padroeiro daquele ano, a ação de Deus
estará circunscrita à forma com a qual ele agiu na vida da personagem
escolhida.
Noto ainda que, ao menos não
tenho conhecimento do contrário, normalmente se escolhem aqueles personagens
cuja história de vida toca no espetacular. Nunca me deparei com uma denominação
que estabelecesse que aquele seria o ano, por exemplo, do bom samaritano. Deus
não derrubou nenhuma muralha na vida deste homem, muito menos lhe abriu um mar
para atravessá-lo a seco. Contudo, ainda que não tenha sido objeto da graça de
Deus, o bom samaritano foi seu agente, foi veículo do carisma divino. Em
que se estabeleça no calendário litúrgico da igreja o ano do bom samaritano,
toda a comunidade se veria diante da necessidade de praticar uma boa piedade cristã.
Poderia também ser proposto
o ano de Zaqueu. Assim, ficaríamos incumbidos de ressarcir aos demais todas as
nossas dívidas. Pais pagariam aos filhos atenção e carinho que lhes negaram.
Filhos perdoariam seus pais por não terem resistido aos arroubos da histeria e
neurose pós-modernas. Nossa fome voraz pelo acúmulo de bens e posses daria
lugar a partilha e comunhão da mesa. Haveria um contraste gritante entre o
coletor de impostos redimido e “a unção da propina”, ou “teologia da
corrupção”.
Quem sabe ainda nomearíamos
o ano de Simão de Cirene, e tomaríamos uma cruz alheia como se nossa fosse. Isto
sem promessa alguma de recompensa, ainda que não soubéssemos que sob os
andrajos e o corpo lacerado de um condenado se escondessem o Céu e toda a
eternidade.
Mas nomear determinadas
personagens que tiveram com Cristo um contato real parece ser desinteressante. Primeiramente
porque, ao invés de obrigar Deus a realizar o maravilhoso em nós, tornamo-nos
veículo de graça aos demais. Ora, não foi isto que aconteceu com o bom
samaritano, Zaqueu, Simão de Cirene e tantos outros. Entretanto, isto exigiria
de nossa parte uma piedade cristã desinteressada e, consequentemente,
desinteressante àqueles que reduzem a fé à mediocridade de seus próprios
interesses.
Graça e Paz a todos!
Pr Luis Claudio