A MEDIDA DA FELICIDADE DA MULHER SIRO-FENÍCIA (Mc 7.24-30)
O texto que agora lemos faz-nos ver o Cristo exercendo seu ministério na
região de Tiro. A cidade, situada na região da Fenícia, já havia rendido muitos
temas aos escritores do Antigo Testamento. Para não recorrer a outros tantos
textos, bastaríamos lembrar dos capítulos 26-27 do livro do profeta Ezequiel. Nestas
laudas, Deus inclui a cidade de Tiro dentre aquelas que, diante de sua abundante
prosperidade, não pesaram suas limitações e finitude. Por conta disso, a faustosa
cidade fenícia vergou-se mediante duras penas.
Conhecer o povo fenício ajuda-nos entender melhor a metrópole de Tiro. A
maior habilidade desenvolvida pelos fenícios foi a navegação. Este povo, que
foi se formando ao longo do Mediterrâneo, desenvolveu uma apurada ciência
náutica que lhe favoreceu a expansão marítima. Por conta desta sua expansão
marítima, a Fenícia logo se tornou um forte centro econômico na antiguidade. O
historiador Diodoro da Sicília afirmou que os fenícios, que “desde uma época
longínqua navegavam sem cessar para comerciar, tinham fundado muitas colônias
nas costas da Líbia”. Devido este seu espírito expansionista, os fenícios
contribuíram com a formação de muitas cidades. Estribado nisto, o geógrafo
Estrabão conclui que os fenícios “foram além das Colunas de Hércules e fundaram
cidades nessas paragens, como também no centro da costa líbia, após a guerra de
Tróia”. Aos fenícios é creditado, portanto, o feito grandioso de terem lançado
a pedra fundamental da História da África do Norte.
No texto em tela, Cristo chega à cidade de Tiro, atual Sur, pertencente
ao Líbano. No período romano, esta cidade tornou-se um centro importante na
produção de púrpura. Assim que chegou a cidade de Tiro, o Redentor logo impôs
certa privacidade, recomendando ao anfitrião que a ninguém comentasse acerca de
sua presença ali. Todavia, o segredo foi rompido, e Cristo foi importunado por
uma mulher que, súplice, rogava-lhe que para curasse sua filha.
A narrativa de Marco diz-nos tratar-se de uma mulher grega, talvez mais
por conta de sua formação cultural que por fatores étnicos. Ela, lançando-se
aos seus pés, rogava por sua filha que estava sendo atormentada por um espírito
maligno. Embora na forma estabeleça-se um tom coloquial no diálogo, todavia ela
encerra uma alegoria teológica extremamente elaborada. Frente ao apelo daquela
mulher, Cristo diz que “primeiro os filho se saciem porque não é bom tirar o
pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos” (v.27).
Ora sabemos que, com estas palavras, Cristo estava resguardando o lugar
que cabia a Israel na ordem da salvação. Uma vez que o Messias adviria do povo
judeu, por uma questão de ordem e não de supremacia racial, ele seria agraciado
primeiramente com as benesses salvíficas. E aqui já começa despontar a grandeza
daquela mulher. Diante das palavras de Cristo, ela simplesmente endossa aquilo
que o Senhor falou: “É verdade, Senhor”. Ora aquela mulher não queria discutir
teologia com Jesus, afinal, tratava-se de grande mestre, de um rabino. Mas ela
insiste no pedido, porque sua necessidade transcendia qualquer dogmatismo
teológico. Ela reconhecia que Cristo tinha razão, mas não se tratava de razão,
e si de necessidade. Daí ela concluir: “mas também os cachorrinhos comem,
debaixo da mesa, as migalhas das crianças” (v.28).
A beleza e profundidade do texto consistem justamente em afirmar que, na
perspectiva cristológica, as necessidades humanas mais profundas possuem um peso
maior que a ortodoxia teológica. Cristo oferece-nos outros exemplos que realçam
esta verdade. Ele cura um enfermo no descanso sabático, algo inadmissível para
os segmentos fundamentalistas de seu tempo. Contudo, voltemos àquela mulher.
Comove-nos o desespero daquela mulher que se faz conformar até mesmo com
migalhas despencando da mesa. Mas a grandeza da alma desta mulher encontra-se
justamente naquilo que nós julgamos decorrer de um profundo estado de pobreza.
A felicidade daquela mulher encontra-se justamente no pouco que sobeja de uma
mesa abastada. O contraste entre o homem moderno e esta mulher logo se
estabelece. O homem da modernidade encontra-se na encruzilhada entre suas
grandes conquistas e angústias as mais diversas. Aquela mulher não trazia consigo
grandes aspirações, mas a medida exata daquilo que lhe tornaria feliz. Não buscava
um banquete, pois sua felicidade poderia ser encontrada nos pedacinhos que
ninguém mais importava.
Dentre outras coisas, aprendemos que aquela mulher sabe reconhecer seu
lugar na mesa. Ela não estava ali para tomar o lugar de ninguém, e sequer a
vemos pedir uma cadeira. Em Lucas, Cristo ensina seus discípulos a não
cobiçarem os melhores lugares numa festa; eles podem representar muitas
decepções (14.7-11). Por ainda não conhecerem plenamente o Cristo, João e Tiago
pedem para assentar-se à sua destra e sesta na glória. Não compreendiam ainda a
dimensão daquele pedido, e Cristo não hesitou em revelar-lhes a ignorância de
sua pretensão (Mc 10.35-40). Como se não bastasse o pedido destes dois irmãos,
ainda encontramos a recusa de Judas Iscariotes, que não vira a profundidade da
graça num bocado de pão (Jo 13.21-30).
Há um contraste gritante entre aquela mulher e Judas Iscariotes. Cristo
molha seu bocado de pão e o divide com Judas; este o rejeita e vai se vender
por trinta moedas de prata. A versão neopentecostal desta ambição de Judas está
representada no bordão evangélico “eu sou filho do rei”. E se o rei não tiver
mais nada para seu filho, senão um bocado de pão? Talvez uma proposta melhor o
faça abandoná-lo assim que cruzar a próxima esquina.
A mulher não exige um palácio,
ouro ou prata alguma; ela simplesmente pede para permanecer debaixo da mesa e
comer as migalhas que caem no chão. Contraste gritante com o discípulo que
ocupava lugar de prestígio na mesa do Redentor!
Vemos claramente que não se trata do lugar que ocupamos, mas o nível de
ralação que temos com o Senhor da mesa. Aquele que fora convidado para compor o
colégio apostólico julgou ser isto pouco para satisfazer suas ambições. Deu às
costas ao bocado de pão e, a passos largos, correu para receber a paga das
trinta moedas de prata. A mulher, ainda que não tivesse sido convidada para
cargo tão elevado, demonstrou maior gratidão e simplicidade com a oferta que
lhe fizera o Senhor. Por conta disso, Cristo então lhe diz: “Pelo
que disseste, vai: o demônio saiu da tua filha” (v.29).
Graça e Paz a todos!
Pr Luis Claudio
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