domingo, 21 de junho de 2015


CRISTO IGNORA O BARCO DEIXADO POR SEUS DISCÍPULOS
 
Embora tenha paralelo em outros dois evangelhos, o episódio que narra a caminhada do Cristo sobre as águas encontra em João um elemento novo. O evento, também registrado por Marcos e Mateus, faz-nos contemplar o Cristo que caminha sobre as águas para encontrar-se com seus discípulos. Com algumas nuances bastante sutis, poderíamos elencar algumas diferenças contidas em cada narrativa. Entretanto, gostaria de me ater a um elemento que é mencionado apenas em João.
Tal elemento permite-nos ampliar a reflexão acerca do evento que foi protagonizado por nosso Redentor. Narrado no capítulo 6 do evangelho joanino, o acontecimento faz referência a outro barco que ficara às margens do Tiberíades, enquanto os discípulos navegavam para Cafarnaum. Após ter realizado a multiplicação dos poucos pães peixes para alimentar a multidão esfaimada, Cristo retira-se para uma montanha.
Como já se fazia tarde, os discípulos decidem partir para Cafarnaun. Contudo, não se descuidam de prover um meio para que seu Senhor pudesse acompanhá-los depois. Muito provavelmente, antes de singrarem as águas do mar da Galiléia, os discípulos cuidaram de deixar um barco para o Cristo, caso ele fosse ao seu encontro. Entretanto, para sua surpresa, tendo remado cerca de trinta estádios (cada estádio tinha 185 m), seus apóstolos viram passar andando sobre as águas o Filho de Deus. Quiseram colocá-lo a bordo, mas ele recusou entrar em sua nau seguindo adiante (6.21).
Normalmente ficamos tão atônitos diante do caminhar do Cristo sobre as águas, que ignoramos alguns elementos que julgamos de somenos importância. Inclinamo-nos a concentrar nossa homilia no evento que parece ser o núcleo do texto. Entretanto, uma leitura mais cuidadosa deste excerto e constataremos sua riqueza ainda virgem, inexplorada por nossos pregadores. Só entenderemos com maior clareza o ocorrido portentoso, se retomarmos a leitura do texto desde o barco que os discípulos reservaram para seu Mestre.
O texto nos permite compreender o gesto solidário daqueles discípulos numa via mais profunda. Há muito mais que cuidado naquele barco deixado para trás, pois Cristo o dispensa. Ao deixarem uma pequena embarcação às margens do Tiberíades para que Cristo dela fizesse uso, os discípulos estavam, de certo modo, delimitando o veiculo por meio do qual ele deveria encontrá-los. O que aparentaria um mero préstimo de seus seguidores reveste-se de um sentido mais profundo que, de certa forma, alcança a nós todos. Cristo simplesmente ignora aquela nau e decide ir a pé sobre o mar para, em seguida, encontrar seus seguidores já em Cafarnaum.
 O texto é sugestivo porque ele parte de uma tentação que nos acomete quase sempre. Ao longo da vida, não são poucas as vezes que queremos ditar ao Cristo como ele deverá vir a nós. Montamos todo o script e ditamos a ele o papel e a maneira de desempenhá-lo. Julgamo-nos senhor do roteiro e determinamos a forma e os meios que o Cristo deverá recorrer para nos alcançar. Há todo um pressuposto deísta na atitude daqueles discípulos, já que subordinam a caminhada de Deus a partir de parâmetros puramente racionais. O barco é obra de nosso engenho; ele se constrói a partir do domínio técnico que nos leva à sua realização. Forçá-lo a entrar em nosso barco consiste em torná-lo tão pequeno quanto nós.
Só nos interessamos por um Deus que caiba na bitola de nossa compreensão. A contradição que daqui decorre logo se mostra evidente. Isto porque ela nega aquilo que é atributo incontestável em Deus: sua transcendência.  
Negar-lhe a transcendência leva-nos a retornar àquele Deus aristotélico, imanente ao cosmo anda que mais perfeito que o homem. Embora a física aristotélica tenha sido superada pelas descobertas empreendidas por Kepler, Copérnico e Galileu, ainda somos profundamente afetados por resquícios do pensamento do Estagirita. No cosmos aristotélico, não há lugar para o imprevisível, já que tudo está ordenado por movimentos físicos, repetitivos, cíclicos. Ao ingressar em nosso universo, Deus nos surpreende e sua presença entre nós traz sempre o sinal do maravilhoso. Porém, ainda buscamos fazer de tudo para confiná-lo nos espaços finitos e limitados de nossa existência. Fazem ressonância com esta concepção materialista os versos de Fernando Pessoa: “Não acredito em Deus porque nunca o vi/ Se ele quisesse que eu acreditasse nele/ Sem dúvida que viria falar comigo/ E entraria pela minha porta dentro dizendo,/ ‘Aqui estou!’”.        
Esperar por um Deus que destrave a maçaneta de minha casa e se apresente a mim implica em reduzi-lo à mesma condição e limitação humanas. Com o evangelista João, aprendemos que o Senhor vem ao nosso encontro, mas ao seu modo, à sua maneira. O caminho é ditado por ele e não está atrelado à nossa maneira de enxergar as coisas.  
Outro pressuposto daqui apreendido alude ao próprio andar sobre as águas e a pouca repercussão que ele provocara entre aqueles homens. Os discípulos parecem lançar no completo esquecimento o que viram no mar de Tiberíades. E isto por questões bastante óbvias, uma vez que andar sobre as águas não alimentaria a fome de ninguém. Compreendemos melhor este fato, quando nos debruçamos sobre a própria lamentação feita pelo Salvador. Ele protesta dizendo: “Em verdade, em verdade, vos digo: vós me procurais não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos saciastes” (Jo 6, 26).
É bem verdade que estamos rodeados de sinais que falam da presença de Cristo entre nós. Contudo, somente nos interessamos por aqueles que nos afetam imediatamente. Preferimos alguém que nos dê o pão a encontrar em nosso entorno algo que nos inspire a trabalhar para adquirir nosso sustento. Uma boa conta bancário ou um salário exorbitante talvez substituísse tudo aquilo que esperamos de Deus. Preferimos os milagres que saciem nossos apetites imediatistas que as maravilhas que nos façam transcender. Fica mais uma vez demonstrada nossa mesquinhez, já que nos desinteressamos das maravilhas de Deus porque não nos trazem nenhum proveito imediato.
 
Graça e Paz a todos,
Pr Luis Claudio!                   

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