terça-feira, 19 de maio de 2015


UM HOMEM CARREGAVA UM CÂNTARO DE ÁGUA SOBRE OS OMBROS (Lc 22.7,13)
 
O texto que hoje lemos é da lavra do evangelista Lucas e situa-se no contexto pascal. A mensagem nele inserida parte de uma indagação bastante pertinente, quando analisado o contexto histórico em que ela é feita. Ansiosos pela celebração da Páscoa, os discípulos perguntam ao Cristo onde deveriam realizar o banquete pascal. Esta pergunta poderia nos parecer vazia de sentido num primeiro momento, o que consiste, como veremos, numa incongruência.
Ora, por ocasião da Páscoa, a cidade de Jerusalém recebia milhares de peregrinos. Por conta disso as hospedagens eram todas ocupadas. A cidade de Jerusalém, que já contava com seus 25 mil habitantes, recebia no período de festas como a Páscoa milhares de peregrinos. O historiador Flávio Josefo chega a afirmar a presença de 12 milhões de peregrinos, que vinham das regiões mais longínquas para celebrar a Páscoa. Esta cifra nos soa um tanto quanto romântica, ainda que isto não reduza a grandiosidade do evento. Cálculos mais realistas e amparados por pesquisas historiográficas consistentes foram feitos por Joaquim Jeremias, que estimou uma média de 125 mil peregrinos presentes naquela ocasião.
Como se não bastasse a quantidade de pessoas em Jerusalém na ocasião da Páscoa, outras limitações dificultavam ainda mais a instalação dos peregrinos para a celebração da festa. Uma prescrição de natureza imobiliária proibia alugar casas em Jerusalém, já que elas eram consideradas propriedade comum de todo Israel. Parece-nos um pouco difícil pensarmos a coisa neste pé, uma vez que fomos profundamente marcados pela questão da propriedade privada no liberalismo clássico.  
O sistema de hotelaria de Jerusalém não possuía estrutura para albergar a quantidade imensa de peregrinos que acorriam à cidade para a celebração da Páscoa. A maior parte dos peregrinos era obrigada a armar tendas em torno da cidade. Passar a noite ao relento era impraticável, haja visto as madrugadas, no tempo da Páscoa, serem muito frias.   
Contudo, havia outras opções que atenuavam o drama dos romeiros em sua viagem litúrgica. Uma parte das pessoas podia encontrar repouso e estadia em povoados no entorno da cidade, como Betfagé e Betãnia. Em algumas ocasiões Cristo foi acolhido pela família solidária de Lázaro, residentes na cidade de Betânia. Porém, no contexto aqui referido, outras portas foram abertas ao nosso Senhor.
É curioso notarmos que Cristo vive à iminência de um drama que ele enfrentou por ocasião de seu nascimento: um lugar para ser hospedado. É da pena de Lucas a autoria da narrativa mais detalhada do drama sofrido por José e Maria à iminência do nascimento de Cristo. Havendo em vão buscado um lugar apropriado, com toda a estrutura necessária que a ocasião exigia para que Cristo viesse ao este mundo, não coube à Maria outra sorte senão dar à luz numa manjedoura. Toda porta que se fecha diante de uma necessidade exposta, por mais suave que seja a forma, deixa registrada na memória o ruído mais altissonante da rejeição.
Confesso que ao ler o texto nesta perspectiva, veio-me à memória os infortúnios sofridos por Cosette, personagem imortalizada pela pena sempre fecunda de Victor Hugo. Diante de um futuro incerto em sua terra natal e sua condição economicamente miserável, Fantine não vê outra opção senão entregar sua filha aos cuidados dos Thénardier. Sob o compromisso de pagar sete francos mensais para os gastos da criança, a pobre mãe entrega, inocentemente, sua filha àqueles estalajadeiros dominados pelos sentimentos mais vis. O casal, aparentemente simpático e humano, logo mostrou sua verdadeira face submetendo a pequena Cosette a trabalhos forçados e humilhações às mais diversas. Aqui a arte parece imitar a vida, já que não são poucos àqueles que experimentam desditas semelhantes ou piores. Cristo viveu as suas!          
Na condição de filho de Deus, Cristo oferece às vidas mais sôfregas a esperança de que, para além de uma vida vergada sob o peso da desdita, há um Pai celeste cuida delas. Muita antes de Cosette e tantas outras personagens reais que enfrentariam a mesma adversidade, Cristo vê fechar-se diante de si portas atrás de portas. A temática parece extremamente atual, uma vez que ocupamos o palácio de nossa existência com tantas outras coisas e afazeres, que não há lugar em nossa vida para hospedarmos o Redentor.
A inquietação de seus seguidores não parece ilegítima. Diante da preocupação justificável de seus discípulos, Cristo então envia Pedro e João ao encontro de um homem que carregava um cântaro de água. Ao encontrá-lo, os discípulos perguntar-lhe-iam acerca do lugar onde o mestre celebraria a Páscoa. Aquele homem haveria de lhes indicar o lugar apropriado.
O episódio beira o prosaico, já que era algo bastante incomum um homem carregando um cântaro de água. Se nos lembrarmos bem, esta atividade era frequentemente realizada por mulheres, como podemos depreender do episódio da samaritana. No quarto capítulo de seu Evangelho, João registra o encontro do Cristo com a mais popular personagem de Samaria. O colóquio soteriológico que daí decorre deu-se justamente no momento em que aquela mulher dirigiu-se ao poço de Jacó para dali retirar água. E os exemplos multiplicam-se diante de nós, a começar pelo Antigo Testamento. No Antigo Testamento, lemos que a primeira vez que Isaac viu aquela que seria sua esposa, Rebeca, ela trazia um cântaro de águas sobre o ombro (Gn. 24. 15-21). Após oferecer-lhe água, e ainda a seus animais, o filho de Abraão não hesitou: estava diante daquela que seria sua futura esposa.  
Há alguns desdobramentos decorrentes do episódio que ora lemos. O homem carregando um cântaro de água reporta-nos a uma fé incondicional. Pedro e João não sabiam aonde aquele homem os levaria. Entretanto, segui-o sem questionar, pois aquela figura inusitada fora indicada pelo próprio Senhor.  
Poderíamos abstrair daqui lições que percorrem os mais diversos níveis de nossa vida com Cristo. Numa perspectiva ministerial, temos muito que aprender com esta cena. Em igrejas cada vez mais ocupadas por celebridades e superstars evangélicos, depreendemos do texto em tela que, por maiores que sejam nossos talentos e carismas, não passamos de meros coadjuvantes no Reino de Deus. Enquanto obreiros, nosso papel está bastante determinado no labor evangelístico, e teremos cumprido nossa vocação se levarmos alguns homens a uma vida íntima com Cristo. Aquele homem, como tantos outros que nos conduzem a uma intimidade com Cristo, foi apenas um meio, e não o fim. Ele faz-nos lembrar Felipe, cujo entusiasmo e alegria cumprem-se em conduzir Natanael até o Messias (Jo 2.45-51).
Pouco sabemos da condição daquele homemque portava um cântaro de água sobre os ombros; não sabemos se tratar de alguém solteiro ou mesmo viúvo. Poderia ser até mesmo um escravo. O acento aqui recai sobre o fato de trazer às costas um cântaro com água. Aquele homem levava sobre si um elemento essencial à vida humana: água. Poderíamos atualizar o episódio sem incorrermos em lucubrações teológicas, uma vez que ele trazia sobre si um bem precioso cada vez mais escasso. Aquilo lhe parecia o essencial a suprir suas necessidades e, quem sabe, a de algumas pessoas que dele pudessem depender. Hoje julgaríamos a postura daquele homem ecologicamente correta. Não desperdiça água, e carrega consigo apenas o essencial. Era um homem anônimo que carregava um bem precioso cada vez mais raro.   
O episódio possui uma amarração toda sugestiva, uma vez que, assim que sair de cena o homem contendo um cântaro com água, entrará outro trazendo consigo um cálice contendo o vinho. Poderíamos estabelecer aqui um paralelo com o episódio de Caná da Galiléia, pois foi lá que o Cristo transformou água em vinho.       
Após terem encontrado aquele homem, os discípulos foram conduzidos até à residência em que se daria o evento. Temos aqui novamente uma referência bíblica à hospedagem. Alguém abre as portas de sua residência para que Cristo ali realize a Eucaristia. O ocorrido vincula-se à igreja de Laodicéia, para a qual Cristo profere o seguinte apelo: Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa, cearei com ele, e ele comigo” (Ap 3.20).
Chama-nos a atenção alguns detalhes que Lucas não se furta em revelar concernentes à residência em que foi celebrada a Eucaristia. O texto diz que a ceia foi realizada numa sala espaçosa, que ficava no andar superior. Além disso, acrescenta-nos o evangelista, havia na sala algumas almofadas. Há toda uma parcimônia em relação à descrição do ambiente. Não vemos ali nenhuma pompa que hoje é tão celebrada em nossos meios evangélicos. A simplicidade do lugar contrasta com a grandeza de sue hóspede. A mensagem é extremamente sugestiva, já que vivemos num meio evangélico onde cada vez mais se cultua o espetáculo e as parafernálias mais diversas, pouco importando se Cristo é uma presença ou não.  
A ceia foi realizada na parte superior daquela residência, que a tradição cristã identificou como o cenáculo. A palavra cenáculo não aparece na Bíblia e sua origem é latina. Ela deriva do termo latino coenaculum, originária do mundo romano, e que indicava o lugar superior da casa onde se realizava a janta. Nos evangelhos encontramos a palavra estromenon, um particípio grego que significa “a sala superior”.   
A imagem de um andar superior onde Cristo tenha realizado a Eucaristia com seus discípulos é, para dizer o mínimo, parte integrante da geografia da Paixão. Na verdade, poderíamos alcunhar esta geografia como uma “alegoria das subidas”. Cristo sobe ao andar superior de uma casa para celebrar a Eucaristia. Depois disso, sobe ao Monte das Oliveiras para orar com os discípulos. Em seguida sobe as escadas do palácio de Antônia, sede na Judéia da procuradoria romana. Após isto, vemo-lo subir a via dolorosa rumo à crucificação; logo após, Ele sobe o monte Gólgota para, por fim, ser suspendido à cruz. E mesmo hoje habitando os píncaros das regiões celestiais, Ele deseja descer e fazer morada num coração humilde e quebrantado. Feliz o homem que o acolhe com amor sincero e desinteressado e o deixa habitar nos lugares mais importantes de sua existência.  
 
Graça e Paz a todos!
Pr Luis Claudio        
 
 
 

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