UM HOMEM CARREGAVA UM
CÂNTARO DE ÁGUA SOBRE OS OMBROS (Lc 22.7,13)
O texto que hoje lemos é da
lavra do evangelista Lucas e situa-se no contexto pascal. A mensagem nele
inserida parte de uma indagação bastante pertinente, quando analisado o
contexto histórico em que ela é feita. Ansiosos pela celebração da Páscoa, os
discípulos perguntam ao Cristo onde deveriam realizar o banquete pascal. Esta
pergunta poderia nos parecer vazia de sentido num primeiro momento, o que
consiste, como veremos, numa incongruência.
Ora, por ocasião da Páscoa,
a cidade de Jerusalém recebia milhares de peregrinos. Por conta disso as
hospedagens eram todas ocupadas. A cidade de Jerusalém, que já contava com seus
25 mil habitantes, recebia no período de festas como a Páscoa milhares de peregrinos.
O historiador Flávio Josefo chega a afirmar a presença de 12 milhões de
peregrinos, que vinham das regiões mais longínquas para celebrar a Páscoa. Esta
cifra nos soa um tanto quanto romântica, ainda que isto não reduza a grandiosidade
do evento. Cálculos mais realistas e amparados por pesquisas historiográficas consistentes
foram feitos por Joaquim Jeremias, que estimou uma média de 125 mil peregrinos
presentes naquela ocasião.
Como se não bastasse a
quantidade de pessoas em Jerusalém na ocasião da Páscoa, outras limitações
dificultavam ainda mais a instalação dos peregrinos para a celebração da festa.
Uma prescrição de natureza imobiliária proibia alugar casas em Jerusalém, já
que elas eram consideradas propriedade comum de todo Israel. Parece-nos um
pouco difícil pensarmos a coisa neste pé, uma vez que fomos profundamente
marcados pela questão da propriedade privada no liberalismo clássico.
O sistema de hotelaria de
Jerusalém não possuía estrutura para albergar a quantidade imensa de peregrinos
que acorriam à cidade para a celebração da Páscoa. A maior parte dos peregrinos
era obrigada a armar tendas em torno da cidade. Passar a noite ao relento era
impraticável, haja visto as madrugadas, no tempo da Páscoa, serem muito
frias.
Contudo, havia outras opções
que atenuavam o drama dos romeiros em sua viagem litúrgica. Uma parte das
pessoas podia encontrar repouso e estadia em povoados no entorno da cidade,
como Betfagé e Betãnia. Em algumas ocasiões Cristo foi acolhido pela família
solidária de Lázaro, residentes na cidade de Betânia. Porém, no contexto aqui
referido, outras portas foram abertas ao nosso Senhor.
É curioso notarmos que
Cristo vive à iminência de um drama que ele enfrentou por ocasião de seu
nascimento: um lugar para ser hospedado. É da pena de Lucas a autoria da
narrativa mais detalhada do drama sofrido por José e Maria à iminência do
nascimento de Cristo. Havendo em vão buscado um lugar apropriado, com toda a
estrutura necessária que a ocasião exigia para que Cristo viesse ao este mundo,
não coube à Maria outra sorte senão dar à luz numa manjedoura. Toda porta que
se fecha diante de uma necessidade exposta, por mais suave que seja a forma,
deixa registrada na memória o ruído mais altissonante da rejeição.
Confesso que ao ler o texto
nesta perspectiva, veio-me à memória os infortúnios sofridos por Cosette,
personagem imortalizada pela pena sempre fecunda de Victor Hugo. Diante de um
futuro incerto em sua terra natal e sua condição economicamente miserável,
Fantine não vê outra opção senão entregar sua filha aos cuidados dos Thénardier.
Sob o compromisso de pagar sete francos mensais para os gastos da criança, a
pobre mãe entrega, inocentemente, sua filha àqueles estalajadeiros dominados
pelos sentimentos mais vis. O casal, aparentemente simpático e humano, logo
mostrou sua verdadeira face submetendo a pequena Cosette a trabalhos forçados e
humilhações às mais diversas. Aqui a arte parece imitar a vida, já que não são
poucos àqueles que experimentam desditas semelhantes ou piores. Cristo viveu as
suas!
Na condição de filho de
Deus, Cristo oferece às vidas mais sôfregas a esperança de que, para além de
uma vida vergada sob o peso da desdita, há um Pai celeste cuida delas. Muita
antes de Cosette e tantas outras personagens reais que enfrentariam a mesma adversidade,
Cristo vê fechar-se diante de si portas atrás de portas. A temática parece
extremamente atual, uma vez que ocupamos o palácio de nossa existência com
tantas outras coisas e afazeres, que não há lugar em nossa vida para
hospedarmos o Redentor.
A inquietação de seus seguidores
não parece ilegítima. Diante da preocupação justificável de seus discípulos, Cristo
então envia Pedro e João ao encontro de um homem que carregava um cântaro de
água. Ao encontrá-lo, os discípulos perguntar-lhe-iam acerca do lugar onde o
mestre celebraria a Páscoa. Aquele homem haveria de lhes indicar o lugar
apropriado.
O episódio beira o prosaico,
já que era algo bastante incomum um homem carregando um cântaro de água. Se nos
lembrarmos bem, esta atividade era frequentemente realizada por mulheres, como
podemos depreender do episódio da samaritana. No quarto capítulo de seu
Evangelho, João registra o encontro do Cristo com a mais popular personagem de
Samaria. O colóquio soteriológico que daí decorre deu-se justamente no momento
em que aquela mulher dirigiu-se ao poço de Jacó para dali retirar água. E os
exemplos multiplicam-se diante de nós, a começar pelo Antigo Testamento. No
Antigo Testamento, lemos que a primeira vez que Isaac viu aquela que seria sua
esposa, Rebeca, ela trazia um cântaro de águas sobre o ombro (Gn. 24. 15-21).
Após oferecer-lhe água, e ainda a seus animais, o filho de Abraão não hesitou:
estava diante daquela que seria sua futura esposa.
Há alguns desdobramentos
decorrentes do episódio que ora lemos. O homem carregando um cântaro de água
reporta-nos a uma fé incondicional. Pedro e João não sabiam aonde aquele homem
os levaria. Entretanto, segui-o sem questionar, pois aquela figura inusitada
fora indicada pelo próprio Senhor.
Poderíamos abstrair daqui
lições que percorrem os mais diversos níveis de nossa vida com Cristo. Numa perspectiva
ministerial, temos muito que aprender com esta cena. Em igrejas cada vez mais
ocupadas por celebridades e superstars
evangélicos, depreendemos do texto em tela que, por maiores que sejam nossos
talentos e carismas, não passamos de meros coadjuvantes no Reino de Deus. Enquanto
obreiros, nosso papel está bastante determinado no labor evangelístico, e teremos
cumprido nossa vocação se levarmos alguns homens a uma vida íntima com Cristo. Aquele
homem, como tantos outros que nos conduzem a uma intimidade com Cristo, foi
apenas um meio, e não o fim. Ele faz-nos lembrar Felipe, cujo entusiasmo e
alegria cumprem-se em conduzir Natanael até o Messias (Jo 2.45-51).
Pouco sabemos da condição
daquele homemque portava um cântaro de água sobre os ombros; não sabemos se
tratar de alguém solteiro ou mesmo viúvo. Poderia ser até mesmo um escravo. O
acento aqui recai sobre o fato de trazer às costas um cântaro com água. Aquele
homem levava sobre si um elemento essencial à vida humana: água. Poderíamos
atualizar o episódio sem incorrermos em lucubrações teológicas, uma vez que ele
trazia sobre si um bem precioso cada vez mais escasso. Aquilo lhe parecia o
essencial a suprir suas necessidades e, quem sabe, a de algumas pessoas que
dele pudessem depender. Hoje julgaríamos a postura daquele homem ecologicamente
correta. Não desperdiça água, e carrega consigo apenas o essencial. Era um
homem anônimo que carregava um bem precioso cada vez mais raro.
O episódio possui uma
amarração toda sugestiva, uma vez que, assim que sair de cena o homem contendo
um cântaro com água, entrará outro trazendo consigo um cálice contendo o vinho.
Poderíamos estabelecer aqui um paralelo com o episódio de Caná da Galiléia,
pois foi lá que o Cristo transformou água em vinho.
Após terem encontrado aquele
homem, os discípulos foram conduzidos até à residência em que se daria o
evento. Temos aqui novamente uma referência bíblica à hospedagem. Alguém abre
as portas de sua residência para que Cristo ali realize a Eucaristia. O
ocorrido vincula-se à igreja de Laodicéia, para a qual Cristo profere o
seguinte apelo: Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir
a porta, entrarei em sua casa, cearei com ele, e ele comigo” (Ap 3.20).
Chama-nos a atenção alguns
detalhes que Lucas não se furta em revelar concernentes à residência em que foi
celebrada a Eucaristia. O texto diz que a ceia foi realizada numa sala
espaçosa, que ficava no andar superior. Além disso, acrescenta-nos o
evangelista, havia na sala algumas almofadas. Há toda uma parcimônia em relação
à descrição do ambiente. Não vemos ali nenhuma pompa que hoje é tão celebrada
em nossos meios evangélicos. A simplicidade do lugar contrasta com a grandeza
de sue hóspede. A mensagem é extremamente sugestiva, já que vivemos num meio
evangélico onde cada vez mais se cultua o espetáculo e as parafernálias mais
diversas, pouco importando se Cristo é uma presença ou não.
A ceia foi realizada na
parte superior daquela residência, que a tradição cristã identificou como o
cenáculo. A palavra cenáculo não aparece na Bíblia e sua origem é latina. Ela
deriva do termo latino coenaculum,
originária do mundo romano, e que indicava o lugar superior da casa onde se
realizava a janta. Nos evangelhos encontramos a palavra estromenon, um particípio grego que significa “a sala superior”.
A imagem de um andar
superior onde Cristo tenha realizado a Eucaristia com seus discípulos é, para
dizer o mínimo, parte integrante da geografia da Paixão. Na verdade, poderíamos
alcunhar esta geografia como uma “alegoria das subidas”. Cristo sobe ao andar
superior de uma casa para celebrar a Eucaristia. Depois disso, sobe ao Monte
das Oliveiras para orar com os discípulos. Em seguida sobe as escadas do
palácio de Antônia, sede na Judéia da procuradoria romana. Após isto, vemo-lo
subir a via dolorosa rumo à crucificação; logo após, Ele sobe o monte Gólgota
para, por fim, ser suspendido à cruz. E mesmo hoje habitando os píncaros das
regiões celestiais, Ele deseja descer e fazer morada num coração humilde e
quebrantado. Feliz o homem que o acolhe com amor sincero e desinteressado e o
deixa habitar nos lugares mais importantes de sua existência.
Graça e Paz a todos!
Pr Luis Claudio
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