O IDIOTA DIANTE DE UMA
PINTURA DE HOLBEIN
Seria redundância de minha
parte discorrer acerca da importância que o cristianismo exerce sobre a obra do
escritor russo Fiódor Dostoiévski. Confesso não ter lido mais que três ou
quatro de seus livros. Todavia, não precisei de grande esforço intelectual para
logo notar o quanto que as questões religiosas pontuam suas discussões.
Dediquei-me recentemente à
leitura de O Idiota, obra do escritor
russo que há muito desejava ler. Trata-se de um livro de fôlego, o que se
comprova pelas suas quase setecentas páginas. Ele foi escrito nos idos de 1868,
num contexto em que seu autor padecia grandes dificuldades financeiras. Embora
tenha ganhado algum adiantamento para escrever esse livro, Dostoiévski o
gastara nos jogos de roleta.
O escritor russo recorreu às
figuras de Dom Quixote e o Cristo para compor seu idiota. Algumas leituras
preambulares já me antecipavam a inspiração que a figura do Cristo desempenhara
na construção da personagem dostoievskiana em tela. Coube ao príncipe Míchkin
carregar sobre si a “aparente pecha de idiota”, e sua relação com Cristo talvez
nos causasse certo estranhamento por conta de seu predicativo negativo.
Entretanto, somente após a leitura de quase trezentas páginas, encontrei uma
discussão mais explícita de natureza religiosa. A discussão é ensejada pelo
quadro o Salvador retirado da cruz,
do pintor alemão Hans Holbein. O pintor alemão, célebre na arte de produzir
retratos, foi amigo de Erasmo de Rotterdam, o maior expoente intelectual da
renascença setentrional. Parte da formação humanística de Holbein se deve ao
convívio com o filósofo holandês.
Enquanto andavam pelo
interior de uma casa, Rogójin e Míchkin entabularam um diálogo motivado pelo
quadro do pintor alemão. Diante da pintura, Rogójin pergunta ao príncipe se ele
acreditava ou não em Deus. Diante da pergunta, o príncipe parece tergiversar de
uma resposta mais pessoal, problematizando a pintura na perspectiva da fé. Por
fim ele segreda ao seu interlocutor o “risco” que aquela pintura causou à sua
fé. Ele afirma que “por causa desse quadro outra pessoa ainda pode perder a fé”
(2013, pg. 256).
O príncipe Míchkin é uma
espécie de alter-ego de seu autor. Tal qual seu criador, a personagem em apreço
também padece ataques de epilepsia. A relação que ele possui com Dostóievski ainda
pode ser depreendida com a experiência que ele mesmo teve diante da pintura de
Holbein. Durante os quatro anos que ficou na Alemanha (1867-1871), período em
que escreveu esse livro, Dostoiévski teve a oportunidade de ver o quadro do
pintor alemão exposto no museu de Basileia. Sua esposa, Anna Grigórievna relata
que o escritor permaneceu diante da pintura por cerca de vinte minutos,
atônito, em estado perturbador. Esta experiência tornou um dos mais célebres
exemplos da Síndrome de Stendhal, distúrbio psíquico e físico que acomete
algumas pessoas diante de grandes obras de arte.
A afirmação do príncipe
desdobra-se numa discussão bastante curiosa, porém gostaria de me deter apenas
nesta sua afirmação. Poderíamos supor aqui que o protagonista da obra em tela
desnudasse o caráter irônico de uma pintura da renascença setentrional. Ora, ao
contrário do forte apelo religioso, vista com maior atenção, a declaração nos
levaria a concluir que aquela obra prestaria um desfavor à fé cristã. Fui então
analisá-la com maior afinco para encontrar nela o que justificasse a confissão
de Míchkin.
Entender a declaração de
Míchkin implica, necessariamente, compreender a pintura de Holbein. O pintor
alemão retratou com tamanho realismo o corpo inerte do Cristo sob a lápide, que
não há nenhum traço ali que avente a possibilidade da Ressurreição. Ali é possível
ver claramente a crueldade da crucificação, pois suas chagas saltam aos olhos.
Não fossem somente os estigmas, o corpo do Cristo parece estar num processo de
decomposição, o que se percebe pela lividez de sua pele. Vemos claramente a
cabeça do Cristo inclinar-se levemente para o lado direito e, com os olhos
esbugalhados, damo-nos conta da intensidade de sua dor.
A relação que o escritor
russo estabeleceu com essa pintura pode ser compreendida pela corrente
teológica bastante cultivada em seu país. Dostoiévski, como a maior parcela da
população russa do século XIX, foi influenciado pela cristologia kenótica, ou do esvaziamento. Ao
contrário da imagem triunfante do Cristo Pantocrátos,
o Cristo Kenótico apresenta-se
abandonado a toda sorte de sofrimento que atinge a humanidade. Cabe aqui
ressaltar que a figura do Cristo crucificado torna-se mais expressiva a partir
da Renascença. O Barroco irá explorá-la como em nenhum outro período da
história da arte. O Cristo Senhor dos Céus e da Terra tão celebrado no período
medieval cede lugar para o Cristo da Cruz. A imagem de um Deus cósmico que tudo
governa torna-se cada vez mais esmaecida à medida que o papado romano, dadas as
convulsões históricas e científicas do século XVI, vê abalado seu poder
temporal. A imagem de um Cristo atrelada às ambições políticas de uma
instituição é sobreposta por um Cristo humanizado, que se deixa ser crucificado
até à morte. A exemplo dessa humanização do Cristo, recorre-nos o quadro de
Holbein.
Holbein parece levar este
humanismo a um realismo tão intenso, que fica quase que impossível acreditar
que aquele Cristo haveria de ressuscitar. Seu corpo inerte sobre a pedra gélida
pouca esperança nos deixa acerca da Ressurreição. A intensidade do corpo quase
que cadavérico do Cristo de Holbein levou-me a refletir na intensidade da
experiência que os discípulos vivenciaram diante da Paixão.
Aquilo que parecia um risco
iminente à fé do príncipe Míchkin foi vivenciado historicamente pelos
discípulos. Logo após terem ouvido a sentença condenatória do Cristo, seus
discípulos desaparecem de cena. Desencorajam-se de seguir o Cristo no momento
em que ouvem a decisão judicial. Não foram até o final, como se a sentença de
um juiz determinasse definitivamente o desfecho da história. Não foram até à
cruz, porque tudo que ali aconteceria já era previsível. Algozes escoltando o
réu até o lugar da execução. Uma multidão curiosa a acompanhando aquele cortejo
sumário. Carpideiras em pranto cênico convidam outros para que se ajuntem a
procissão. Corpos estendidos numa cruz contorcidos em dor, sob o olhar atento
da guarda; curiosos que fazem da morte o mais mórbido e intrigante dos
espetáculos. Parentes desolados diante de seus familiares.
Os discípulos apenas viram o
desenrolar de um processo que eles conheciam passo a passo. Não havia em sua
perspectiva realista e estanque lugar para a novidade de Deus. O roteiro para
tudo aquilo eles já conheciam. Julgaram que seu Mestre terminaria a vida como
tantos outros que sofreram a mesma condenação. Nesse ponto, sentiram-se
desencorajados em prosseguir a caminhada. Não havia necessidade da evidência de
um corpo jazido, pois isto não passava de uma consequência natural do desfecho
do processo.
Não são poucos os quadros de
nossa existência por meio dos quais não conseguimos divisar mais que um Cristo
impotente; que, ainda que se compadeça de nossa situação, encontra-se tão
nivelado à nossa condição existencial que parece idêntico a nós. Ao longo da
vida experimentamos incontáveis dramas pessoais que nos levam, ainda que de
forma inconfessa, a questionar se de fato Ele ressuscitou.
A pintura de Holbein parece
negar o domingo da Ressurreição. O corpo de Cristo já entra no processo de
putrefação irreversível. A Natureza impõe suas leis e seu ritmo, e até mesmo o
Cristo parece render-se a ela. Não haveria um retorno, mas o movimento linear
que rege o percurso do processo. Mas o quadro do pintor alemão deteve-se numa
página apenas do Evangelho. Holbein não está preocupado com toda a história,
mas com aquela que parece ser mais dramática, que melhor serve à arte.
A crise experimentada pelos
discípulos coloca-nos diante do retrato da Europa materialista do século XIX.
Esse é o século em que Nietzsche anuncia a morte de Deus. É o século que se
ergue sob as balizas dos ideais materialistas apregoados pelo Iluminismo. É o
tempo herdeiro do espírito das Luzes que pinta a fé com as mesmas cores
esmaecidas do Cristo de Holbein.
Sua pintura coloca-nos
diante de um total abandono. O Cristo parece estar abandonado, pois não há nada
que acena por uma ação de Deus trazendo-o dos mortos. Por conseguinte,
abandonado também está o espectador, que vê expirar ali toda a sua esperança.
Já não há a quem se orar e os cânticos emudeceram. Resta-nos somente voltar
para casa, como fizeram os discípulos a caminho de Emaús. Contudo, a relação
que liga o príncipe Míchkin à pintura de Holbein convida-nos a transcender aquilo
que nos é apresentado aos olhos.
O Cristo de Holbein e a
personagem de Dostoiévski parecem formar um díptico. A tônica não recai naquilo
que liga o Cristo à nossa condição humana, que na pintura de Holbein projeta-se
como a morte levada ao extremo. É a beleza de sua alma e as virtudes que lhe
eram tão caras que servem de contraste ao “horror de seu corpo desfigurado”.
Sua beleza convida-nos a ir além do meramente físico. Nesse sentido, o ideal de
beleza que o escritor russo procurou plasmar em sua personagem corresponde
àquilo que Cristo insistentemente recomendava aos seus discípulos. De modo que, se Holbein levou ao extremo a
condição que uniu o Cristo ao homem, Dostoiévski propõe o movimento inverso:
somente unidos a Cristo podemos transcender rumo àquela beleza que vai além da
forma.
Graça e Paz a todos,
Pr Luis Claudio.
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