sábado, 19 de setembro de 2015


O IDIOTA DIANTE DE UMA PINTURA DE HOLBEIN
 
Seria redundância de minha parte discorrer acerca da importância que o cristianismo exerce sobre a obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski. Confesso não ter lido mais que três ou quatro de seus livros. Todavia, não precisei de grande esforço intelectual para logo notar o quanto que as questões religiosas pontuam suas discussões.
Dediquei-me recentemente à leitura de O Idiota, obra do escritor russo que há muito desejava ler. Trata-se de um livro de fôlego, o que se comprova pelas suas quase setecentas páginas. Ele foi escrito nos idos de 1868, num contexto em que seu autor padecia grandes dificuldades financeiras. Embora tenha ganhado algum adiantamento para escrever esse livro, Dostoiévski o gastara nos jogos de roleta.  
O escritor russo recorreu às figuras de Dom Quixote e o Cristo para compor seu idiota. Algumas leituras preambulares já me antecipavam a inspiração que a figura do Cristo desempenhara na construção da personagem dostoievskiana em tela. Coube ao príncipe Míchkin carregar sobre si a “aparente pecha de idiota”, e sua relação com Cristo talvez nos causasse certo estranhamento por conta de seu predicativo negativo. Entretanto, somente após a leitura de quase trezentas páginas, encontrei uma discussão mais explícita de natureza religiosa. A discussão é ensejada pelo quadro o Salvador retirado da cruz, do pintor alemão Hans Holbein. O pintor alemão, célebre na arte de produzir retratos, foi amigo de Erasmo de Rotterdam, o maior expoente intelectual da renascença setentrional. Parte da formação humanística de Holbein se deve ao convívio com o filósofo holandês.             
Enquanto andavam pelo interior de uma casa, Rogójin e Míchkin entabularam um diálogo motivado pelo quadro do pintor alemão. Diante da pintura, Rogójin pergunta ao príncipe se ele acreditava ou não em Deus. Diante da pergunta, o príncipe parece tergiversar de uma resposta mais pessoal, problematizando a pintura na perspectiva da fé. Por fim ele segreda ao seu interlocutor o “risco” que aquela pintura causou à sua fé. Ele afirma que “por causa desse quadro outra pessoa ainda pode perder a fé” (2013, pg. 256).
O príncipe Míchkin é uma espécie de alter-ego de seu autor. Tal qual seu criador, a personagem em apreço também padece ataques de epilepsia. A relação que ele possui com Dostóievski ainda pode ser depreendida com a experiência que ele mesmo teve diante da pintura de Holbein. Durante os quatro anos que ficou na Alemanha (1867-1871), período em que escreveu esse livro, Dostoiévski teve a oportunidade de ver o quadro do pintor alemão exposto no museu de Basileia. Sua esposa, Anna Grigórievna relata que o escritor permaneceu diante da pintura por cerca de vinte minutos, atônito, em estado perturbador. Esta experiência tornou um dos mais célebres exemplos da Síndrome de Stendhal, distúrbio psíquico e físico que acomete algumas pessoas diante de grandes obras de arte. 
A afirmação do príncipe desdobra-se numa discussão bastante curiosa, porém gostaria de me deter apenas nesta sua afirmação. Poderíamos supor aqui que o protagonista da obra em tela desnudasse o caráter irônico de uma pintura da renascença setentrional. Ora, ao contrário do forte apelo religioso, vista com maior atenção, a declaração nos levaria a concluir que aquela obra prestaria um desfavor à fé cristã. Fui então analisá-la com maior afinco para encontrar nela o que justificasse a confissão de Míchkin.
Entender a declaração de Míchkin implica, necessariamente, compreender a pintura de Holbein. O pintor alemão retratou com tamanho realismo o corpo inerte do Cristo sob a lápide, que não há nenhum traço ali que avente a possibilidade da Ressurreição. Ali é possível ver claramente a crueldade da crucificação, pois suas chagas saltam aos olhos. Não fossem somente os estigmas, o corpo do Cristo parece estar num processo de decomposição, o que se percebe pela lividez de sua pele. Vemos claramente a cabeça do Cristo inclinar-se levemente para o lado direito e, com os olhos esbugalhados, damo-nos conta da intensidade de sua dor.   
A relação que o escritor russo estabeleceu com essa pintura pode ser compreendida pela corrente teológica bastante cultivada em seu país. Dostoiévski, como a maior parcela da população russa do século XIX, foi influenciado pela cristologia kenótica, ou do esvaziamento. Ao contrário da imagem triunfante do Cristo Pantocrátos, o Cristo Kenótico apresenta-se abandonado a toda sorte de sofrimento que atinge a humanidade. Cabe aqui ressaltar que a figura do Cristo crucificado torna-se mais expressiva a partir da Renascença. O Barroco irá explorá-la como em nenhum outro período da história da arte. O Cristo Senhor dos Céus e da Terra tão celebrado no período medieval cede lugar para o Cristo da Cruz. A imagem de um Deus cósmico que tudo governa torna-se cada vez mais esmaecida à medida que o papado romano, dadas as convulsões históricas e científicas do século XVI, vê abalado seu poder temporal. A imagem de um Cristo atrelada às ambições políticas de uma instituição é sobreposta por um Cristo humanizado, que se deixa ser crucificado até à morte. A exemplo dessa humanização do Cristo, recorre-nos o quadro de Holbein.  
Holbein parece levar este humanismo a um realismo tão intenso, que fica quase que impossível acreditar que aquele Cristo haveria de ressuscitar. Seu corpo inerte sobre a pedra gélida pouca esperança nos deixa acerca da Ressurreição. A intensidade do corpo quase que cadavérico do Cristo de Holbein levou-me a refletir na intensidade da experiência que os discípulos vivenciaram diante da Paixão.   
Aquilo que parecia um risco iminente à fé do príncipe Míchkin foi vivenciado historicamente pelos discípulos. Logo após terem ouvido a sentença condenatória do Cristo, seus discípulos desaparecem de cena. Desencorajam-se de seguir o Cristo no momento em que ouvem a decisão judicial. Não foram até o final, como se a sentença de um juiz determinasse definitivamente o desfecho da história. Não foram até à cruz, porque tudo que ali aconteceria já era previsível. Algozes escoltando o réu até o lugar da execução. Uma multidão curiosa a acompanhando aquele cortejo sumário. Carpideiras em pranto cênico convidam outros para que se ajuntem a procissão. Corpos estendidos numa cruz contorcidos em dor, sob o olhar atento da guarda; curiosos que fazem da morte o mais mórbido e intrigante dos espetáculos. Parentes desolados diante de seus familiares.
Os discípulos apenas viram o desenrolar de um processo que eles conheciam passo a passo. Não havia em sua perspectiva realista e estanque lugar para a novidade de Deus. O roteiro para tudo aquilo eles já conheciam. Julgaram que seu Mestre terminaria a vida como tantos outros que sofreram a mesma condenação. Nesse ponto, sentiram-se desencorajados em prosseguir a caminhada. Não havia necessidade da evidência de um corpo jazido, pois isto não passava de uma consequência natural do desfecho do processo.  
Não são poucos os quadros de nossa existência por meio dos quais não conseguimos divisar mais que um Cristo impotente; que, ainda que se compadeça de nossa situação, encontra-se tão nivelado à nossa condição existencial que parece idêntico a nós. Ao longo da vida experimentamos incontáveis dramas pessoais que nos levam, ainda que de forma inconfessa, a questionar se de fato Ele ressuscitou. 
A pintura de Holbein parece negar o domingo da Ressurreição. O corpo de Cristo já entra no processo de putrefação irreversível. A Natureza impõe suas leis e seu ritmo, e até mesmo o Cristo parece render-se a ela. Não haveria um retorno, mas o movimento linear que rege o percurso do processo. Mas o quadro do pintor alemão deteve-se numa página apenas do Evangelho. Holbein não está preocupado com toda a história, mas com aquela que parece ser mais dramática, que melhor serve à arte.
A crise experimentada pelos discípulos coloca-nos diante do retrato da Europa materialista do século XIX. Esse é o século em que Nietzsche anuncia a morte de Deus. É o século que se ergue sob as balizas dos ideais materialistas apregoados pelo Iluminismo. É o tempo herdeiro do espírito das Luzes que pinta a fé com as mesmas cores esmaecidas do Cristo de Holbein. 
Sua pintura coloca-nos diante de um total abandono. O Cristo parece estar abandonado, pois não há nada que acena por uma ação de Deus trazendo-o dos mortos. Por conseguinte, abandonado também está o espectador, que vê expirar ali toda a sua esperança. Já não há a quem se orar e os cânticos emudeceram. Resta-nos somente voltar para casa, como fizeram os discípulos a caminho de Emaús. Contudo, a relação que liga o príncipe Míchkin à pintura de Holbein convida-nos a transcender aquilo que nos é apresentado aos olhos.
O Cristo de Holbein e a personagem de Dostoiévski parecem formar um díptico. A tônica não recai naquilo que liga o Cristo à nossa condição humana, que na pintura de Holbein projeta-se como a morte levada ao extremo. É a beleza de sua alma e as virtudes que lhe eram tão caras que servem de contraste ao “horror de seu corpo desfigurado”. Sua beleza convida-nos a ir além do meramente físico. Nesse sentido, o ideal de beleza que o escritor russo procurou plasmar em sua personagem corresponde àquilo que Cristo insistentemente recomendava aos seus discípulos.  De modo que, se Holbein levou ao extremo a condição que uniu o Cristo ao homem, Dostoiévski propõe o movimento inverso: somente unidos a Cristo podemos transcender rumo àquela beleza que vai além da forma.   
  
       
 
Graça e Paz a todos,
Pr Luis Claudio.        
 
       

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