sábado, 19 de setembro de 2015


O IDIOTA DIANTE DE UMA PINTURA DE HOLBEIN
 
Seria redundância de minha parte discorrer acerca da importância que o cristianismo exerce sobre a obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski. Confesso não ter lido mais que três ou quatro de seus livros. Todavia, não precisei de grande esforço intelectual para logo notar o quanto que as questões religiosas pontuam suas discussões.
Dediquei-me recentemente à leitura de O Idiota, obra do escritor russo que há muito desejava ler. Trata-se de um livro de fôlego, o que se comprova pelas suas quase setecentas páginas. Ele foi escrito nos idos de 1868, num contexto em que seu autor padecia grandes dificuldades financeiras. Embora tenha ganhado algum adiantamento para escrever esse livro, Dostoiévski o gastara nos jogos de roleta.  
O escritor russo recorreu às figuras de Dom Quixote e o Cristo para compor seu idiota. Algumas leituras preambulares já me antecipavam a inspiração que a figura do Cristo desempenhara na construção da personagem dostoievskiana em tela. Coube ao príncipe Míchkin carregar sobre si a “aparente pecha de idiota”, e sua relação com Cristo talvez nos causasse certo estranhamento por conta de seu predicativo negativo. Entretanto, somente após a leitura de quase trezentas páginas, encontrei uma discussão mais explícita de natureza religiosa. A discussão é ensejada pelo quadro o Salvador retirado da cruz, do pintor alemão Hans Holbein. O pintor alemão, célebre na arte de produzir retratos, foi amigo de Erasmo de Rotterdam, o maior expoente intelectual da renascença setentrional. Parte da formação humanística de Holbein se deve ao convívio com o filósofo holandês.             
Enquanto andavam pelo interior de uma casa, Rogójin e Míchkin entabularam um diálogo motivado pelo quadro do pintor alemão. Diante da pintura, Rogójin pergunta ao príncipe se ele acreditava ou não em Deus. Diante da pergunta, o príncipe parece tergiversar de uma resposta mais pessoal, problematizando a pintura na perspectiva da fé. Por fim ele segreda ao seu interlocutor o “risco” que aquela pintura causou à sua fé. Ele afirma que “por causa desse quadro outra pessoa ainda pode perder a fé” (2013, pg. 256).
O príncipe Míchkin é uma espécie de alter-ego de seu autor. Tal qual seu criador, a personagem em apreço também padece ataques de epilepsia. A relação que ele possui com Dostóievski ainda pode ser depreendida com a experiência que ele mesmo teve diante da pintura de Holbein. Durante os quatro anos que ficou na Alemanha (1867-1871), período em que escreveu esse livro, Dostoiévski teve a oportunidade de ver o quadro do pintor alemão exposto no museu de Basileia. Sua esposa, Anna Grigórievna relata que o escritor permaneceu diante da pintura por cerca de vinte minutos, atônito, em estado perturbador. Esta experiência tornou um dos mais célebres exemplos da Síndrome de Stendhal, distúrbio psíquico e físico que acomete algumas pessoas diante de grandes obras de arte. 
A afirmação do príncipe desdobra-se numa discussão bastante curiosa, porém gostaria de me deter apenas nesta sua afirmação. Poderíamos supor aqui que o protagonista da obra em tela desnudasse o caráter irônico de uma pintura da renascença setentrional. Ora, ao contrário do forte apelo religioso, vista com maior atenção, a declaração nos levaria a concluir que aquela obra prestaria um desfavor à fé cristã. Fui então analisá-la com maior afinco para encontrar nela o que justificasse a confissão de Míchkin.
Entender a declaração de Míchkin implica, necessariamente, compreender a pintura de Holbein. O pintor alemão retratou com tamanho realismo o corpo inerte do Cristo sob a lápide, que não há nenhum traço ali que avente a possibilidade da Ressurreição. Ali é possível ver claramente a crueldade da crucificação, pois suas chagas saltam aos olhos. Não fossem somente os estigmas, o corpo do Cristo parece estar num processo de decomposição, o que se percebe pela lividez de sua pele. Vemos claramente a cabeça do Cristo inclinar-se levemente para o lado direito e, com os olhos esbugalhados, damo-nos conta da intensidade de sua dor.   
A relação que o escritor russo estabeleceu com essa pintura pode ser compreendida pela corrente teológica bastante cultivada em seu país. Dostoiévski, como a maior parcela da população russa do século XIX, foi influenciado pela cristologia kenótica, ou do esvaziamento. Ao contrário da imagem triunfante do Cristo Pantocrátos, o Cristo Kenótico apresenta-se abandonado a toda sorte de sofrimento que atinge a humanidade. Cabe aqui ressaltar que a figura do Cristo crucificado torna-se mais expressiva a partir da Renascença. O Barroco irá explorá-la como em nenhum outro período da história da arte. O Cristo Senhor dos Céus e da Terra tão celebrado no período medieval cede lugar para o Cristo da Cruz. A imagem de um Deus cósmico que tudo governa torna-se cada vez mais esmaecida à medida que o papado romano, dadas as convulsões históricas e científicas do século XVI, vê abalado seu poder temporal. A imagem de um Cristo atrelada às ambições políticas de uma instituição é sobreposta por um Cristo humanizado, que se deixa ser crucificado até à morte. A exemplo dessa humanização do Cristo, recorre-nos o quadro de Holbein.  
Holbein parece levar este humanismo a um realismo tão intenso, que fica quase que impossível acreditar que aquele Cristo haveria de ressuscitar. Seu corpo inerte sobre a pedra gélida pouca esperança nos deixa acerca da Ressurreição. A intensidade do corpo quase que cadavérico do Cristo de Holbein levou-me a refletir na intensidade da experiência que os discípulos vivenciaram diante da Paixão.   
Aquilo que parecia um risco iminente à fé do príncipe Míchkin foi vivenciado historicamente pelos discípulos. Logo após terem ouvido a sentença condenatória do Cristo, seus discípulos desaparecem de cena. Desencorajam-se de seguir o Cristo no momento em que ouvem a decisão judicial. Não foram até o final, como se a sentença de um juiz determinasse definitivamente o desfecho da história. Não foram até à cruz, porque tudo que ali aconteceria já era previsível. Algozes escoltando o réu até o lugar da execução. Uma multidão curiosa a acompanhando aquele cortejo sumário. Carpideiras em pranto cênico convidam outros para que se ajuntem a procissão. Corpos estendidos numa cruz contorcidos em dor, sob o olhar atento da guarda; curiosos que fazem da morte o mais mórbido e intrigante dos espetáculos. Parentes desolados diante de seus familiares.
Os discípulos apenas viram o desenrolar de um processo que eles conheciam passo a passo. Não havia em sua perspectiva realista e estanque lugar para a novidade de Deus. O roteiro para tudo aquilo eles já conheciam. Julgaram que seu Mestre terminaria a vida como tantos outros que sofreram a mesma condenação. Nesse ponto, sentiram-se desencorajados em prosseguir a caminhada. Não havia necessidade da evidência de um corpo jazido, pois isto não passava de uma consequência natural do desfecho do processo.  
Não são poucos os quadros de nossa existência por meio dos quais não conseguimos divisar mais que um Cristo impotente; que, ainda que se compadeça de nossa situação, encontra-se tão nivelado à nossa condição existencial que parece idêntico a nós. Ao longo da vida experimentamos incontáveis dramas pessoais que nos levam, ainda que de forma inconfessa, a questionar se de fato Ele ressuscitou. 
A pintura de Holbein parece negar o domingo da Ressurreição. O corpo de Cristo já entra no processo de putrefação irreversível. A Natureza impõe suas leis e seu ritmo, e até mesmo o Cristo parece render-se a ela. Não haveria um retorno, mas o movimento linear que rege o percurso do processo. Mas o quadro do pintor alemão deteve-se numa página apenas do Evangelho. Holbein não está preocupado com toda a história, mas com aquela que parece ser mais dramática, que melhor serve à arte.
A crise experimentada pelos discípulos coloca-nos diante do retrato da Europa materialista do século XIX. Esse é o século em que Nietzsche anuncia a morte de Deus. É o século que se ergue sob as balizas dos ideais materialistas apregoados pelo Iluminismo. É o tempo herdeiro do espírito das Luzes que pinta a fé com as mesmas cores esmaecidas do Cristo de Holbein. 
Sua pintura coloca-nos diante de um total abandono. O Cristo parece estar abandonado, pois não há nada que acena por uma ação de Deus trazendo-o dos mortos. Por conseguinte, abandonado também está o espectador, que vê expirar ali toda a sua esperança. Já não há a quem se orar e os cânticos emudeceram. Resta-nos somente voltar para casa, como fizeram os discípulos a caminho de Emaús. Contudo, a relação que liga o príncipe Míchkin à pintura de Holbein convida-nos a transcender aquilo que nos é apresentado aos olhos.
O Cristo de Holbein e a personagem de Dostoiévski parecem formar um díptico. A tônica não recai naquilo que liga o Cristo à nossa condição humana, que na pintura de Holbein projeta-se como a morte levada ao extremo. É a beleza de sua alma e as virtudes que lhe eram tão caras que servem de contraste ao “horror de seu corpo desfigurado”. Sua beleza convida-nos a ir além do meramente físico. Nesse sentido, o ideal de beleza que o escritor russo procurou plasmar em sua personagem corresponde àquilo que Cristo insistentemente recomendava aos seus discípulos.  De modo que, se Holbein levou ao extremo a condição que uniu o Cristo ao homem, Dostoiévski propõe o movimento inverso: somente unidos a Cristo podemos transcender rumo àquela beleza que vai além da forma.   
  
       
 
Graça e Paz a todos,
Pr Luis Claudio.        
 
       

domingo, 21 de junho de 2015


CRISTO IGNORA O BARCO DEIXADO POR SEUS DISCÍPULOS
 
Embora tenha paralelo em outros dois evangelhos, o episódio que narra a caminhada do Cristo sobre as águas encontra em João um elemento novo. O evento, também registrado por Marcos e Mateus, faz-nos contemplar o Cristo que caminha sobre as águas para encontrar-se com seus discípulos. Com algumas nuances bastante sutis, poderíamos elencar algumas diferenças contidas em cada narrativa. Entretanto, gostaria de me ater a um elemento que é mencionado apenas em João.
Tal elemento permite-nos ampliar a reflexão acerca do evento que foi protagonizado por nosso Redentor. Narrado no capítulo 6 do evangelho joanino, o acontecimento faz referência a outro barco que ficara às margens do Tiberíades, enquanto os discípulos navegavam para Cafarnaum. Após ter realizado a multiplicação dos poucos pães peixes para alimentar a multidão esfaimada, Cristo retira-se para uma montanha.
Como já se fazia tarde, os discípulos decidem partir para Cafarnaun. Contudo, não se descuidam de prover um meio para que seu Senhor pudesse acompanhá-los depois. Muito provavelmente, antes de singrarem as águas do mar da Galiléia, os discípulos cuidaram de deixar um barco para o Cristo, caso ele fosse ao seu encontro. Entretanto, para sua surpresa, tendo remado cerca de trinta estádios (cada estádio tinha 185 m), seus apóstolos viram passar andando sobre as águas o Filho de Deus. Quiseram colocá-lo a bordo, mas ele recusou entrar em sua nau seguindo adiante (6.21).
Normalmente ficamos tão atônitos diante do caminhar do Cristo sobre as águas, que ignoramos alguns elementos que julgamos de somenos importância. Inclinamo-nos a concentrar nossa homilia no evento que parece ser o núcleo do texto. Entretanto, uma leitura mais cuidadosa deste excerto e constataremos sua riqueza ainda virgem, inexplorada por nossos pregadores. Só entenderemos com maior clareza o ocorrido portentoso, se retomarmos a leitura do texto desde o barco que os discípulos reservaram para seu Mestre.
O texto nos permite compreender o gesto solidário daqueles discípulos numa via mais profunda. Há muito mais que cuidado naquele barco deixado para trás, pois Cristo o dispensa. Ao deixarem uma pequena embarcação às margens do Tiberíades para que Cristo dela fizesse uso, os discípulos estavam, de certo modo, delimitando o veiculo por meio do qual ele deveria encontrá-los. O que aparentaria um mero préstimo de seus seguidores reveste-se de um sentido mais profundo que, de certa forma, alcança a nós todos. Cristo simplesmente ignora aquela nau e decide ir a pé sobre o mar para, em seguida, encontrar seus seguidores já em Cafarnaum.
 O texto é sugestivo porque ele parte de uma tentação que nos acomete quase sempre. Ao longo da vida, não são poucas as vezes que queremos ditar ao Cristo como ele deverá vir a nós. Montamos todo o script e ditamos a ele o papel e a maneira de desempenhá-lo. Julgamo-nos senhor do roteiro e determinamos a forma e os meios que o Cristo deverá recorrer para nos alcançar. Há todo um pressuposto deísta na atitude daqueles discípulos, já que subordinam a caminhada de Deus a partir de parâmetros puramente racionais. O barco é obra de nosso engenho; ele se constrói a partir do domínio técnico que nos leva à sua realização. Forçá-lo a entrar em nosso barco consiste em torná-lo tão pequeno quanto nós.
Só nos interessamos por um Deus que caiba na bitola de nossa compreensão. A contradição que daqui decorre logo se mostra evidente. Isto porque ela nega aquilo que é atributo incontestável em Deus: sua transcendência.  
Negar-lhe a transcendência leva-nos a retornar àquele Deus aristotélico, imanente ao cosmo anda que mais perfeito que o homem. Embora a física aristotélica tenha sido superada pelas descobertas empreendidas por Kepler, Copérnico e Galileu, ainda somos profundamente afetados por resquícios do pensamento do Estagirita. No cosmos aristotélico, não há lugar para o imprevisível, já que tudo está ordenado por movimentos físicos, repetitivos, cíclicos. Ao ingressar em nosso universo, Deus nos surpreende e sua presença entre nós traz sempre o sinal do maravilhoso. Porém, ainda buscamos fazer de tudo para confiná-lo nos espaços finitos e limitados de nossa existência. Fazem ressonância com esta concepção materialista os versos de Fernando Pessoa: “Não acredito em Deus porque nunca o vi/ Se ele quisesse que eu acreditasse nele/ Sem dúvida que viria falar comigo/ E entraria pela minha porta dentro dizendo,/ ‘Aqui estou!’”.        
Esperar por um Deus que destrave a maçaneta de minha casa e se apresente a mim implica em reduzi-lo à mesma condição e limitação humanas. Com o evangelista João, aprendemos que o Senhor vem ao nosso encontro, mas ao seu modo, à sua maneira. O caminho é ditado por ele e não está atrelado à nossa maneira de enxergar as coisas.  
Outro pressuposto daqui apreendido alude ao próprio andar sobre as águas e a pouca repercussão que ele provocara entre aqueles homens. Os discípulos parecem lançar no completo esquecimento o que viram no mar de Tiberíades. E isto por questões bastante óbvias, uma vez que andar sobre as águas não alimentaria a fome de ninguém. Compreendemos melhor este fato, quando nos debruçamos sobre a própria lamentação feita pelo Salvador. Ele protesta dizendo: “Em verdade, em verdade, vos digo: vós me procurais não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos saciastes” (Jo 6, 26).
É bem verdade que estamos rodeados de sinais que falam da presença de Cristo entre nós. Contudo, somente nos interessamos por aqueles que nos afetam imediatamente. Preferimos alguém que nos dê o pão a encontrar em nosso entorno algo que nos inspire a trabalhar para adquirir nosso sustento. Uma boa conta bancário ou um salário exorbitante talvez substituísse tudo aquilo que esperamos de Deus. Preferimos os milagres que saciem nossos apetites imediatistas que as maravilhas que nos façam transcender. Fica mais uma vez demonstrada nossa mesquinhez, já que nos desinteressamos das maravilhas de Deus porque não nos trazem nenhum proveito imediato.
 
Graça e Paz a todos,
Pr Luis Claudio!                   

terça-feira, 19 de maio de 2015


UM HOMEM CARREGAVA UM CÂNTARO DE ÁGUA SOBRE OS OMBROS (Lc 22.7,13)
 
O texto que hoje lemos é da lavra do evangelista Lucas e situa-se no contexto pascal. A mensagem nele inserida parte de uma indagação bastante pertinente, quando analisado o contexto histórico em que ela é feita. Ansiosos pela celebração da Páscoa, os discípulos perguntam ao Cristo onde deveriam realizar o banquete pascal. Esta pergunta poderia nos parecer vazia de sentido num primeiro momento, o que consiste, como veremos, numa incongruência.
Ora, por ocasião da Páscoa, a cidade de Jerusalém recebia milhares de peregrinos. Por conta disso as hospedagens eram todas ocupadas. A cidade de Jerusalém, que já contava com seus 25 mil habitantes, recebia no período de festas como a Páscoa milhares de peregrinos. O historiador Flávio Josefo chega a afirmar a presença de 12 milhões de peregrinos, que vinham das regiões mais longínquas para celebrar a Páscoa. Esta cifra nos soa um tanto quanto romântica, ainda que isto não reduza a grandiosidade do evento. Cálculos mais realistas e amparados por pesquisas historiográficas consistentes foram feitos por Joaquim Jeremias, que estimou uma média de 125 mil peregrinos presentes naquela ocasião.
Como se não bastasse a quantidade de pessoas em Jerusalém na ocasião da Páscoa, outras limitações dificultavam ainda mais a instalação dos peregrinos para a celebração da festa. Uma prescrição de natureza imobiliária proibia alugar casas em Jerusalém, já que elas eram consideradas propriedade comum de todo Israel. Parece-nos um pouco difícil pensarmos a coisa neste pé, uma vez que fomos profundamente marcados pela questão da propriedade privada no liberalismo clássico.  
O sistema de hotelaria de Jerusalém não possuía estrutura para albergar a quantidade imensa de peregrinos que acorriam à cidade para a celebração da Páscoa. A maior parte dos peregrinos era obrigada a armar tendas em torno da cidade. Passar a noite ao relento era impraticável, haja visto as madrugadas, no tempo da Páscoa, serem muito frias.   
Contudo, havia outras opções que atenuavam o drama dos romeiros em sua viagem litúrgica. Uma parte das pessoas podia encontrar repouso e estadia em povoados no entorno da cidade, como Betfagé e Betãnia. Em algumas ocasiões Cristo foi acolhido pela família solidária de Lázaro, residentes na cidade de Betânia. Porém, no contexto aqui referido, outras portas foram abertas ao nosso Senhor.
É curioso notarmos que Cristo vive à iminência de um drama que ele enfrentou por ocasião de seu nascimento: um lugar para ser hospedado. É da pena de Lucas a autoria da narrativa mais detalhada do drama sofrido por José e Maria à iminência do nascimento de Cristo. Havendo em vão buscado um lugar apropriado, com toda a estrutura necessária que a ocasião exigia para que Cristo viesse ao este mundo, não coube à Maria outra sorte senão dar à luz numa manjedoura. Toda porta que se fecha diante de uma necessidade exposta, por mais suave que seja a forma, deixa registrada na memória o ruído mais altissonante da rejeição.
Confesso que ao ler o texto nesta perspectiva, veio-me à memória os infortúnios sofridos por Cosette, personagem imortalizada pela pena sempre fecunda de Victor Hugo. Diante de um futuro incerto em sua terra natal e sua condição economicamente miserável, Fantine não vê outra opção senão entregar sua filha aos cuidados dos Thénardier. Sob o compromisso de pagar sete francos mensais para os gastos da criança, a pobre mãe entrega, inocentemente, sua filha àqueles estalajadeiros dominados pelos sentimentos mais vis. O casal, aparentemente simpático e humano, logo mostrou sua verdadeira face submetendo a pequena Cosette a trabalhos forçados e humilhações às mais diversas. Aqui a arte parece imitar a vida, já que não são poucos àqueles que experimentam desditas semelhantes ou piores. Cristo viveu as suas!          
Na condição de filho de Deus, Cristo oferece às vidas mais sôfregas a esperança de que, para além de uma vida vergada sob o peso da desdita, há um Pai celeste cuida delas. Muita antes de Cosette e tantas outras personagens reais que enfrentariam a mesma adversidade, Cristo vê fechar-se diante de si portas atrás de portas. A temática parece extremamente atual, uma vez que ocupamos o palácio de nossa existência com tantas outras coisas e afazeres, que não há lugar em nossa vida para hospedarmos o Redentor.
A inquietação de seus seguidores não parece ilegítima. Diante da preocupação justificável de seus discípulos, Cristo então envia Pedro e João ao encontro de um homem que carregava um cântaro de água. Ao encontrá-lo, os discípulos perguntar-lhe-iam acerca do lugar onde o mestre celebraria a Páscoa. Aquele homem haveria de lhes indicar o lugar apropriado.
O episódio beira o prosaico, já que era algo bastante incomum um homem carregando um cântaro de água. Se nos lembrarmos bem, esta atividade era frequentemente realizada por mulheres, como podemos depreender do episódio da samaritana. No quarto capítulo de seu Evangelho, João registra o encontro do Cristo com a mais popular personagem de Samaria. O colóquio soteriológico que daí decorre deu-se justamente no momento em que aquela mulher dirigiu-se ao poço de Jacó para dali retirar água. E os exemplos multiplicam-se diante de nós, a começar pelo Antigo Testamento. No Antigo Testamento, lemos que a primeira vez que Isaac viu aquela que seria sua esposa, Rebeca, ela trazia um cântaro de águas sobre o ombro (Gn. 24. 15-21). Após oferecer-lhe água, e ainda a seus animais, o filho de Abraão não hesitou: estava diante daquela que seria sua futura esposa.  
Há alguns desdobramentos decorrentes do episódio que ora lemos. O homem carregando um cântaro de água reporta-nos a uma fé incondicional. Pedro e João não sabiam aonde aquele homem os levaria. Entretanto, segui-o sem questionar, pois aquela figura inusitada fora indicada pelo próprio Senhor.  
Poderíamos abstrair daqui lições que percorrem os mais diversos níveis de nossa vida com Cristo. Numa perspectiva ministerial, temos muito que aprender com esta cena. Em igrejas cada vez mais ocupadas por celebridades e superstars evangélicos, depreendemos do texto em tela que, por maiores que sejam nossos talentos e carismas, não passamos de meros coadjuvantes no Reino de Deus. Enquanto obreiros, nosso papel está bastante determinado no labor evangelístico, e teremos cumprido nossa vocação se levarmos alguns homens a uma vida íntima com Cristo. Aquele homem, como tantos outros que nos conduzem a uma intimidade com Cristo, foi apenas um meio, e não o fim. Ele faz-nos lembrar Felipe, cujo entusiasmo e alegria cumprem-se em conduzir Natanael até o Messias (Jo 2.45-51).
Pouco sabemos da condição daquele homemque portava um cântaro de água sobre os ombros; não sabemos se tratar de alguém solteiro ou mesmo viúvo. Poderia ser até mesmo um escravo. O acento aqui recai sobre o fato de trazer às costas um cântaro com água. Aquele homem levava sobre si um elemento essencial à vida humana: água. Poderíamos atualizar o episódio sem incorrermos em lucubrações teológicas, uma vez que ele trazia sobre si um bem precioso cada vez mais escasso. Aquilo lhe parecia o essencial a suprir suas necessidades e, quem sabe, a de algumas pessoas que dele pudessem depender. Hoje julgaríamos a postura daquele homem ecologicamente correta. Não desperdiça água, e carrega consigo apenas o essencial. Era um homem anônimo que carregava um bem precioso cada vez mais raro.   
O episódio possui uma amarração toda sugestiva, uma vez que, assim que sair de cena o homem contendo um cântaro com água, entrará outro trazendo consigo um cálice contendo o vinho. Poderíamos estabelecer aqui um paralelo com o episódio de Caná da Galiléia, pois foi lá que o Cristo transformou água em vinho.       
Após terem encontrado aquele homem, os discípulos foram conduzidos até à residência em que se daria o evento. Temos aqui novamente uma referência bíblica à hospedagem. Alguém abre as portas de sua residência para que Cristo ali realize a Eucaristia. O ocorrido vincula-se à igreja de Laodicéia, para a qual Cristo profere o seguinte apelo: Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa, cearei com ele, e ele comigo” (Ap 3.20).
Chama-nos a atenção alguns detalhes que Lucas não se furta em revelar concernentes à residência em que foi celebrada a Eucaristia. O texto diz que a ceia foi realizada numa sala espaçosa, que ficava no andar superior. Além disso, acrescenta-nos o evangelista, havia na sala algumas almofadas. Há toda uma parcimônia em relação à descrição do ambiente. Não vemos ali nenhuma pompa que hoje é tão celebrada em nossos meios evangélicos. A simplicidade do lugar contrasta com a grandeza de sue hóspede. A mensagem é extremamente sugestiva, já que vivemos num meio evangélico onde cada vez mais se cultua o espetáculo e as parafernálias mais diversas, pouco importando se Cristo é uma presença ou não.  
A ceia foi realizada na parte superior daquela residência, que a tradição cristã identificou como o cenáculo. A palavra cenáculo não aparece na Bíblia e sua origem é latina. Ela deriva do termo latino coenaculum, originária do mundo romano, e que indicava o lugar superior da casa onde se realizava a janta. Nos evangelhos encontramos a palavra estromenon, um particípio grego que significa “a sala superior”.   
A imagem de um andar superior onde Cristo tenha realizado a Eucaristia com seus discípulos é, para dizer o mínimo, parte integrante da geografia da Paixão. Na verdade, poderíamos alcunhar esta geografia como uma “alegoria das subidas”. Cristo sobe ao andar superior de uma casa para celebrar a Eucaristia. Depois disso, sobe ao Monte das Oliveiras para orar com os discípulos. Em seguida sobe as escadas do palácio de Antônia, sede na Judéia da procuradoria romana. Após isto, vemo-lo subir a via dolorosa rumo à crucificação; logo após, Ele sobe o monte Gólgota para, por fim, ser suspendido à cruz. E mesmo hoje habitando os píncaros das regiões celestiais, Ele deseja descer e fazer morada num coração humilde e quebrantado. Feliz o homem que o acolhe com amor sincero e desinteressado e o deixa habitar nos lugares mais importantes de sua existência.  
 
Graça e Paz a todos!
Pr Luis Claudio