CRISTO IGNORA O BARCO
DEIXADO POR SEUS DISCÍPULOS
Embora tenha paralelo em
outros dois evangelhos, o episódio que narra a caminhada do Cristo sobre as
águas encontra em João um elemento novo. O evento, também registrado por Marcos
e Mateus, faz-nos contemplar o Cristo que caminha sobre as águas para
encontrar-se com seus discípulos. Com algumas nuances bastante sutis, poderíamos
elencar algumas diferenças contidas em cada narrativa. Entretanto, gostaria de
me ater a um elemento que é mencionado apenas em João.
Tal elemento permite-nos
ampliar a reflexão acerca do evento que foi protagonizado por nosso Redentor. Narrado
no capítulo 6 do evangelho joanino, o acontecimento faz referência a outro
barco que ficara às margens do Tiberíades, enquanto os discípulos navegavam
para Cafarnaum. Após ter realizado a multiplicação dos poucos pães peixes para
alimentar a multidão esfaimada, Cristo retira-se para uma montanha.
Como já se fazia tarde, os
discípulos decidem partir para Cafarnaun. Contudo, não se descuidam de prover
um meio para que seu Senhor pudesse acompanhá-los depois. Muito provavelmente,
antes de singrarem as águas do mar da Galiléia, os discípulos cuidaram de
deixar um barco para o Cristo, caso ele fosse ao seu encontro. Entretanto, para
sua surpresa, tendo remado cerca de trinta estádios (cada estádio tinha 185 m),
seus apóstolos viram passar andando sobre as águas o Filho de Deus. Quiseram
colocá-lo a bordo, mas ele recusou entrar em sua nau seguindo adiante (6.21).
Normalmente ficamos tão
atônitos diante do caminhar do Cristo sobre as águas, que ignoramos alguns
elementos que julgamos de somenos importância. Inclinamo-nos a concentrar nossa
homilia no evento que parece ser o núcleo do texto. Entretanto, uma leitura
mais cuidadosa deste excerto e constataremos sua riqueza ainda virgem,
inexplorada por nossos pregadores. Só entenderemos com maior clareza o ocorrido
portentoso, se retomarmos a leitura do texto desde o barco que os discípulos
reservaram para seu Mestre.
O texto nos permite compreender
o gesto solidário daqueles discípulos numa via mais profunda. Há muito mais que
cuidado naquele barco deixado para trás, pois Cristo o dispensa. Ao deixarem
uma pequena embarcação às margens do Tiberíades para que Cristo dela fizesse
uso, os discípulos estavam, de certo modo, delimitando o veiculo por meio do
qual ele deveria encontrá-los. O que aparentaria um mero préstimo de seus
seguidores reveste-se de um sentido mais profundo que, de certa forma, alcança
a nós todos. Cristo simplesmente ignora aquela nau e decide ir a pé sobre o mar
para, em seguida, encontrar seus seguidores já em Cafarnaum.
O texto é sugestivo porque ele parte de uma
tentação que nos acomete quase sempre. Ao longo da vida, não são poucas as
vezes que queremos ditar ao Cristo como ele deverá vir a nós. Montamos todo o script e ditamos a ele o papel e a
maneira de desempenhá-lo. Julgamo-nos senhor do roteiro e determinamos a forma
e os meios que o Cristo deverá recorrer para nos alcançar. Há todo um
pressuposto deísta na atitude daqueles discípulos, já que subordinam a
caminhada de Deus a partir de parâmetros puramente racionais. O barco é obra de
nosso engenho; ele se constrói a partir do domínio técnico que nos leva à sua
realização. Forçá-lo a entrar em nosso barco consiste em torná-lo tão pequeno
quanto nós.
Só nos interessamos por um
Deus que caiba na bitola de nossa compreensão. A contradição que daqui decorre
logo se mostra evidente. Isto porque ela nega aquilo que é atributo
incontestável em Deus: sua transcendência.
Negar-lhe a transcendência
leva-nos a retornar àquele Deus aristotélico, imanente ao cosmo anda que mais
perfeito que o homem. Embora a física aristotélica tenha sido superada pelas
descobertas empreendidas por Kepler, Copérnico e Galileu, ainda somos
profundamente afetados por resquícios do pensamento do Estagirita. No cosmos
aristotélico, não há lugar para o imprevisível, já que tudo está ordenado por
movimentos físicos, repetitivos, cíclicos. Ao ingressar em nosso universo, Deus
nos surpreende e sua presença entre nós traz sempre o sinal do maravilhoso.
Porém, ainda buscamos fazer de tudo para confiná-lo nos espaços finitos e limitados
de nossa existência. Fazem ressonância com esta concepção materialista os
versos de Fernando Pessoa: “Não acredito em Deus porque nunca o vi/ Se ele
quisesse que eu acreditasse nele/ Sem dúvida que viria falar comigo/ E entraria
pela minha porta dentro dizendo,/ ‘Aqui estou!’”.
Esperar por um Deus que destrave
a maçaneta de minha casa e se apresente a mim implica em reduzi-lo à mesma
condição e limitação humanas. Com o evangelista João, aprendemos que o Senhor
vem ao nosso encontro, mas ao seu modo, à sua maneira. O caminho é ditado por
ele e não está atrelado à nossa maneira de enxergar as coisas.
Outro pressuposto daqui apreendido
alude ao próprio andar sobre as águas e a pouca repercussão que ele provocara
entre aqueles homens. Os discípulos parecem lançar no completo esquecimento o
que viram no mar de Tiberíades. E isto por questões bastante óbvias, uma vez
que andar sobre as águas não alimentaria a fome de ninguém. Compreendemos
melhor este fato, quando nos debruçamos sobre a própria lamentação feita pelo
Salvador. Ele protesta dizendo: “Em verdade, em verdade, vos digo: vós me
procurais não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos
saciastes” (Jo 6, 26).
É bem verdade que estamos
rodeados de sinais que falam da presença de Cristo entre nós. Contudo, somente
nos interessamos por aqueles que nos afetam imediatamente. Preferimos alguém
que nos dê o pão a encontrar em nosso entorno algo que nos inspire a trabalhar
para adquirir nosso sustento. Uma boa conta bancário ou um salário exorbitante
talvez substituísse tudo aquilo que esperamos de Deus. Preferimos os milagres
que saciem nossos apetites imediatistas que as maravilhas que nos façam
transcender. Fica mais uma vez demonstrada nossa mesquinhez, já que nos
desinteressamos das maravilhas de Deus porque não nos trazem nenhum proveito
imediato.
Graça e Paz a todos,
Pr Luis Claudio!