segunda-feira, 20 de outubro de 2014


                    O NOVO CALENDÁRIO LUTÚRGICO NEOPENTECOSTAL
 
É uma prática corrente em determinados segmentos evangélicos fixar uma espécie de ano litúrgico. Este ano litúrgico cria um calendário bastante claro e objetivo. A partir de uma “revelação” dada ao apóstolo ou bispo, nomeia-se uma personagem bíblica cuja história servirá de inspiração aos fieis. Daí a cúpula da denominação estabelecer que este será o ano de Gedeão, o ano de Elias, o ano de Davi etc. Pensando nesta prática, pus-me a refletir acerca dos desdobramentos intrínsecos a isto, e logo me dei conta de sua inconsistência.
Entendamos melhor em que consiste um calendário desta natureza. Um ano de Josué seria marcado pela queda de grandes muralhas, pela conquista de uma terra fértil e a travessia do rio Jordão. Disso decorre que, ao longo do período determinado, os que crerem verão muralhas despencarem diante de si.  A problemática daqui decorrente refere-se, primeiramente, a uma questão de identidade. Bem nenhum de nós é Josué! Cada indivíduo possui a sua própria história e tomar para si aquela que foi de outro consiste, necessariamente, em sua própria desfiguração individual. A medida da graça de Deus revelada a Josué não deve ser a mesma que me contemple.
Chama-me ainda a atenção a relação que os fieis estabelecem, ainda que de forma inconsciente, com as personagens bíblicas nomeadas. A começar pelo fato que o ano é fixado a partir do nome da personagem escolhida e não pelo seu Deus, a quem se deve determinada benesse. A relação que os fieis dessas comunidades passam a ter com as personagens bíblicas faz delas uma espécie de neopadroeiros dos novos evangélicos. Quando nos deparamos com “o panteão dos padroeiros do calendário litúrgico neopentecostal”, podemos constatar traços bastante comuns. Normalmente, a personagem bíblica escolhida vivenciou um contexto bastante adverso. O cenário sobre o qual desenrola sua história é de um quadro de hostilidade humanamente irreversível. Gedeão jamais venceria um exército tão numeroso quanto o madianita com apenas trezentos homens. Josué não teria conquistado Canaã apenas rodeando as muralhas de Jericó e tocando trombetas. Quanto maior o grau das impossibilidades maior a atração que estes cenários exercem sobre os grupos em tela. A considerar apenas estes elementos, e são praticamente eles que alimentam as esperanças dessas comunidades, qualquer herói hollywoodiano substituiria facilmente sua ideia de Deus. 
Em segundo lugar, um calendário desta natureza deixa de fora quase todas as personagens dos evangelhos e, por conseguinte, a perspectiva da graça de Deus atuando por meio do Cristo Encarnado. Neste sentido, o próprio Cristo torna-se desinteressante, pois, ao contrário dos grandes nomes do Antigo Testamento, ele morre sob o signo do anti-herói. Sua pessoa não serve de inspiração a Judá, muito menos irá encorajar seus coevos a voos de emancipação nacionalista. As personagens veterotestamentárias povoavam o imaginário nacional hebreu, expressão de uma puerilidade religioso-política cuja leitura encontrará outras ressonâncias a partir do advento de Cristo. Não me desvencilho da ideia de que este calendário neopentecostal simplesmente ungiu esta necessidade hollywoodiana de heróis.       
Em terceiro lugar, este calendário repete um modelo de se conceber a história a partir de um movimento cíclico. Os antigos gregos já pensavam as coisas assim. Nietzsche retomou esta filosofia da história e a celebrou, com elementos próprios da modernidade, em seu eterno retorno. O eterno retorno nietzschiano consiste na negação de qualquer perspectiva metafísica ou apocalíptica da história.
Mais ainda, lançar mão deste modelo a partir de personagens do Antigo Testamento vai na contramão da própria concepção rabínica de história. A teologia da história judaica adotou um modelo linear, e não cíclico. Há mais esperança messiânica no modelo de história rabínico que no pessimismo paganizado dos neopentecostais.  
Fica evidente também o quanto que tal calendário litúrgico parte da concepção de um Deus facilmente programado. Consiste em dizer que, dado o padroeiro daquele ano, a ação de Deus estará circunscrita à forma com a qual ele agiu na vida da personagem escolhida.  
Noto ainda que, ao menos não tenho conhecimento do contrário, normalmente se escolhem aqueles personagens cuja história de vida toca no espetacular. Nunca me deparei com uma denominação que estabelecesse que aquele seria o ano, por exemplo, do bom samaritano. Deus não derrubou nenhuma muralha na vida deste homem, muito menos lhe abriu um mar para atravessá-lo a seco. Contudo, ainda que não tenha sido objeto da graça de Deus, o bom samaritano foi seu agente, foi veículo do carisma divino.            Em que se estabeleça no calendário litúrgico da igreja o ano do bom samaritano, toda a comunidade se veria diante da necessidade de praticar uma boa piedade cristã.
Poderia também ser proposto o ano de Zaqueu. Assim, ficaríamos incumbidos de ressarcir aos demais todas as nossas dívidas. Pais pagariam aos filhos atenção e carinho que lhes negaram. Filhos perdoariam seus pais por não terem resistido aos arroubos da histeria e neurose pós-modernas. Nossa fome voraz pelo acúmulo de bens e posses daria lugar a partilha e comunhão da mesa. Haveria um contraste gritante entre o coletor de impostos redimido e “a unção da propina”, ou “teologia da corrupção”.
Quem sabe ainda nomearíamos o ano de Simão de Cirene, e tomaríamos uma cruz alheia como se nossa fosse. Isto sem promessa alguma de recompensa, ainda que não soubéssemos que sob os andrajos e o corpo lacerado de um condenado se escondessem o Céu e toda a eternidade.  
Mas nomear determinadas personagens que tiveram com Cristo um contato real parece ser desinteressante. Primeiramente porque, ao invés de obrigar Deus a realizar o maravilhoso em nós, tornamo-nos veículo de graça aos demais. Ora, não foi isto que aconteceu com o bom samaritano, Zaqueu, Simão de Cirene e tantos outros. Entretanto, isto exigiria de nossa parte uma piedade cristã desinteressada e, consequentemente, desinteressante àqueles que reduzem a fé à mediocridade de seus próprios interesses.
 
Graça e Paz a todos!
Pr Luis Claudio