DAVI E A SÍNDROME
NEOPENTECOSTAL DAS ESTATÍSTICAS
O texto que hoje evocamos
para nossa reflexão encontra-se entre os registros reais acerca da figura de
Davi. Se hoje estamos tão acostumados, ao menos com o uso da locução, com as
crônicas policiais, o texto das Escrituras coloca-nos diante de uma crônica
mais elevada: as crônicas reais.
O episódio fala de um senso
determinado pelo rei Davi, que ordenava a Joab, membro do Estado-maior de seu
exército, que numerasse o povo. Embora Joab advertisse o rei quanto à natureza
pecaminosa daquela empresa, Davi manteve-se irresoluto diante de sua decisão. Que
o cronista interpretou aquela medida adotada por Davi por uma via negativa não
resta dúvida. Caberia, portanto, compreender as razões que pesavam contra o
senso empreendido pelo grande monarca judeu. O comentador do Antigo Testamento
Estevão Bettencourt aventa duas possíveis explicações para a repulsa daquela
medida administrativa. Ouçamo-lo:
Para os orientais, um
recenseamento significava ato de arrogância do homem frente a Deus, pois
implicava a intromissão da criatura num domínio reservado ao Criador só-o da
multiplicação dos seres vivos [...] Mais ainda: tendo Deus prometido a Abraão
posteridade inumerável, um recenseamento do povo tomava facilmente o aspecto de
verificação do dom de Deus, ditada por falta de confiança (Para Entender o Antigo Testamento.1965,
pg.183).
Consideradas estas duas possíveis interpretações
acerca do recenseamento empreendido por Davi, seu pecado oscilaria entre a
soberba e a incredulidade. Sente-se autorizado em ingressar num terreno próprio
de Deus. Quantificar seres humanos implicaria em pôr termos no próprio poder
gerador de Deus. Por outro lado, o rei folheava a história buscando saber se as
promessas divinas se perderam ao longo do tempo.
Os números finais da
pesquisa determinada por Davi ainda poderiam potencializar-lhe outras fraquezas.
Feito o recenseamento, chegou-se ao número de um milhão e cem mil homens aptos
para a guerra em todo o Israel. Em Judá o reino ainda podia contar com
quatrocentos mil homens capazes para a beligerância(I Cr 21.5). Um exército tão
numeroso poderia insuflar na alma do rei a sensação de um reino intangível,
inabalável, indestrutível. Tal imagem parece absolutamente contrária à épica
história de Davi, que conquistou o trono com homens marginalizados, sem nenhuma
formação militar. Foi alistando indivíduos desqualificados, endividados e tidos
como os “fora-da-lei” que Davi constituía, ao longo de suas andanças, o capital
humano necessário para ascender ao trono. A graça de Deus suprimia as carências
e limitações que lhe se impunham.
Contudo, o pastor que um dia
se tornaria rei contava com a mão providencial de Deus. Agora, talvez por não
mais recordar os caminhos que o levara até ali, Davi sente-se confortável
simplesmente por ter formado um poderoso exército. Ledo engano, o tempo lhe
mostrará, uma vez que em breve ele será vergonhosamente destituído do trono e
humilhado pelo próprio filho, Absalão.
O ato real não agradou o
Senhor, que desferiu um duro golpe sobre o povo de Israel. Um anjo se pôs a
dizimar milhares de súditos que pertenciam ao reino davídico. Julgaríamos hoje
o castigo injusto, uma vez que o percalço de um rei culminou no sofrimento do
povo. Porém, em nada o texto parece forçoso. Ora, de há muito que uma
administração pública impiedosa faz sofrer, principalmente, aqueles que devem
ser a razão de qualquer estadista: o povo. O episódio fala muito mais à natureza
de nossas ações que à ação de Deus diante delas. As consequências de nosso
pecado pesam sobre nós, mas também sobre muitos outros que nos acercam.
E tudo irrompe desta fixação
do monarca pelos números. Não vemos Davi montando uma estrutura pública a fim de
pesar a miséria econômico-social de seus governados. Sua preocupação não está
acentuada sobre as necessidades de seus súditos. Seres humanos com toda aquela
carga de carências próprias à condição são reduzidos a números que, dada sua
extensão, servem apenas para aquiescer com o coração vaidoso de um governador. Homens
e todas as suas paixões são reduzidos às frias unidades numéricas.
Não seria desarrazoado
encontrar na liderança evangélica atual ressonâncias deste apego ao
quantitativo. Não existe hoje uma preocupação com a formação cristã genuína,
que leve o discípulo a seguir os passos de seu Redentor. Em nome de um
evangelismo que nada mais faz senão ungir o projeto expansionista de líderes
que, em nome de Deus, buscam construir impérios neste mundo, o cristianismo
vai, paulatinamente, abandonando o Cristo peregrino das páginas esmaecidas do
Evangelho pelo Cristo Pantocrátor da
pós-modernidade. A nossa caricatura sequer tem o esplendor estético da imagem
que adornava a cúpula das antigas igrejas bizantinas.
Por conseguinte, a igreja
evangélica, principalmente em nosso país, acaba se perdendo na burocratização
própria de uma empresa. Sua obsessão por estatísticas não nos deixa mentir, e
os consequências que daí advêm são muitas. O IBGE neopentecostal coloca o líder
eclesiástico a par das dimensões de seu império. Quando os números não corresponderem
às suas ambições, ele logo procura rever seus caminhos, descartando aqueles que
supostamente não estejam dando certo. Paira sobre este líder certa sensação de
insucesso, uma vez que a bitola com a qual mede sua relação eclesiástica é a
mesma dos grandes empreendedores. O que busca é sucesso nos negócios, e não
fidelidade àquele que o salvou e servir zelosamente àqueles que o Senhor lhes
confiou. Se as estatísticas não o satisfazem, troca-se o produto por outro que
tenha maior procura. Os modismos decorrem desta necessidade de ampliar o número
de membros. Com isto a Igreja cria seus próprios caminhos, dando às costas
àquele que deveria ser seu único caminho: Cristo.
Graça e Paz a todos!
Pr Luis Claudio