terça-feira, 23 de setembro de 2014


DAVI E A SÍNDROME NEOPENTECOSTAL DAS ESTATÍSTICAS
 
O texto que hoje evocamos para nossa reflexão encontra-se entre os registros reais acerca da figura de Davi. Se hoje estamos tão acostumados, ao menos com o uso da locução, com as crônicas policiais, o texto das Escrituras coloca-nos diante de uma crônica mais elevada: as crônicas reais.
O episódio fala de um senso determinado pelo rei Davi, que ordenava a Joab, membro do Estado-maior de seu exército, que numerasse o povo. Embora Joab advertisse o rei quanto à natureza pecaminosa daquela empresa, Davi manteve-se irresoluto diante de sua decisão. Que o cronista interpretou aquela medida adotada por Davi por uma via negativa não resta dúvida. Caberia, portanto, compreender as razões que pesavam contra o senso empreendido pelo grande monarca judeu. O comentador do Antigo Testamento Estevão Bettencourt aventa duas possíveis explicações para a repulsa daquela medida administrativa. Ouçamo-lo:
 
Para os orientais, um recenseamento significava ato de arrogância do homem frente a Deus, pois implicava a intromissão da criatura num domínio reservado ao Criador só-o da multiplicação dos seres vivos [...] Mais ainda: tendo Deus prometido a Abraão posteridade inumerável, um recenseamento do povo tomava facilmente o aspecto de verificação do dom de Deus, ditada por falta de confiança (Para Entender o Antigo Testamento.1965, pg.183).
 
 Consideradas estas duas possíveis interpretações acerca do recenseamento empreendido por Davi, seu pecado oscilaria entre a soberba e a incredulidade. Sente-se autorizado em ingressar num terreno próprio de Deus. Quantificar seres humanos implicaria em pôr termos no próprio poder gerador de Deus. Por outro lado, o rei folheava a história buscando saber se as promessas divinas se perderam ao longo do tempo.
Os números finais da pesquisa determinada por Davi ainda poderiam potencializar-lhe outras fraquezas. Feito o recenseamento, chegou-se ao número de um milhão e cem mil homens aptos para a guerra em todo o Israel. Em Judá o reino ainda podia contar com quatrocentos mil homens capazes para a beligerância(I Cr 21.5). Um exército tão numeroso poderia insuflar na alma do rei a sensação de um reino intangível, inabalável, indestrutível. Tal imagem parece absolutamente contrária à épica história de Davi, que conquistou o trono com homens marginalizados, sem nenhuma formação militar. Foi alistando indivíduos desqualificados, endividados e tidos como os “fora-da-lei” que Davi constituía, ao longo de suas andanças, o capital humano necessário para ascender ao trono. A graça de Deus suprimia as carências e limitações que lhe se impunham.
Contudo, o pastor que um dia se tornaria rei contava com a mão providencial de Deus. Agora, talvez por não mais recordar os caminhos que o levara até ali, Davi sente-se confortável simplesmente por ter formado um poderoso exército. Ledo engano, o tempo lhe mostrará, uma vez que em breve ele será vergonhosamente destituído do trono e humilhado pelo próprio filho, Absalão.        
O ato real não agradou o Senhor, que desferiu um duro golpe sobre o povo de Israel. Um anjo se pôs a dizimar milhares de súditos que pertenciam ao reino davídico. Julgaríamos hoje o castigo injusto, uma vez que o percalço de um rei culminou no sofrimento do povo. Porém, em nada o texto parece forçoso. Ora, de há muito que uma administração pública impiedosa faz sofrer, principalmente, aqueles que devem ser a razão de qualquer estadista: o povo. O episódio fala muito mais à natureza de nossas ações que à ação de Deus diante delas. As consequências de nosso pecado pesam sobre nós, mas também sobre muitos outros que nos acercam.
E tudo irrompe desta fixação do monarca pelos números. Não vemos Davi montando uma estrutura pública a fim de pesar a miséria econômico-social de seus governados. Sua preocupação não está acentuada sobre as necessidades de seus súditos. Seres humanos com toda aquela carga de carências próprias à condição são reduzidos a números que, dada sua extensão, servem apenas para aquiescer com o coração vaidoso de um governador. Homens e todas as suas paixões são reduzidos às frias unidades numéricas.
Não seria desarrazoado encontrar na liderança evangélica atual ressonâncias deste apego ao quantitativo. Não existe hoje uma preocupação com a formação cristã genuína, que leve o discípulo a seguir os passos de seu Redentor. Em nome de um evangelismo que nada mais faz senão ungir o projeto expansionista de líderes que, em nome de Deus, buscam construir impérios neste mundo, o cristianismo vai, paulatinamente, abandonando o Cristo peregrino das páginas esmaecidas do Evangelho pelo Cristo Pantocrátor da pós-modernidade. A nossa caricatura sequer tem o esplendor estético da imagem que adornava a cúpula das antigas igrejas bizantinas.
Por conseguinte, a igreja evangélica, principalmente em nosso país, acaba se perdendo na burocratização própria de uma empresa. Sua obsessão por estatísticas não nos deixa mentir, e os consequências que daí advêm são muitas. O IBGE neopentecostal coloca o líder eclesiástico a par das dimensões de seu império. Quando os números não corresponderem às suas ambições, ele logo procura rever seus caminhos, descartando aqueles que supostamente não estejam dando certo. Paira sobre este líder certa sensação de insucesso, uma vez que a bitola com a qual mede sua relação eclesiástica é a mesma dos grandes empreendedores. O que busca é sucesso nos negócios, e não fidelidade àquele que o salvou e servir zelosamente àqueles que o Senhor lhes confiou. Se as estatísticas não o satisfazem, troca-se o produto por outro que tenha maior procura. Os modismos decorrem desta necessidade de ampliar o número de membros. Com isto a Igreja cria seus próprios caminhos, dando às costas àquele que deveria ser seu único caminho: Cristo.    
 
 
Graça e Paz a todos!
Pr Luis Claudio